Em Foco 1907

Um dos maiores escritores brasileiros saiu de cena aos 73 anos, deixando uma obra que ombreia outros imortais da literatura nacional, com o diferencial do molho que só João Ubaldo Ribeiro tinha. O texto do Em Foco do Diario deste sábado coube, merecidamente, a Vandeck Santiago.

Você mereceu, João Ubaldo

Não há lógica no êxito de um escritor. É preciso ler muito e ser obstinado, mas também contar com o imponderável, dizia  João Ubaldo

Vandeck Santiago

O que acontece com quem não morre? Fica velho, ora, dizia João Ubaldo Ribeiro, que teve sua jornada rumo à velhice interrompida ontem. Morreu de madrugada, no Rio, de embolia pulmonar, aos 73 anos. Nesta idade morte e velhice são temas que estão sempre rondando, à espreita de uma brecha para entrar na conversa. “Até os 40 anos você acha que só quem morre são os outros, mas depois dos 70 nem brinca muito com este assunto porque dá depressão”, disse ele numa entrevista concedida em 2011. Repetia expressões que vinha usando nos últimos anos, como em outra entrevista, em 2009: “Até que você começa a perder referências familiares. Morre o Chacrinha, o Flávio Cavalcanti… E certamente o espírito da grande ceifadeira assusta”.
Por aí já dá para constatar uma característica típica de João Ubaldo: o humor e a ironia fina. Ele era um dos melhores escritores brasileiros, com obra elogiada pela crítica e traduzida para o exterior – hoje e nos próximos dias vocês verão na imprensa especialistas em literatura e escritores destacando o valor da obra dele. Mas, à parte isso, ele era o mais bem humorado escritor brasileiro. Em 1999 lançou o romance A Casa dos Budas Ditosos, escrito por encomenda da Editora Objetiva. É a narrativa de uma mulher (de 68 anos, reparem só…) sobre suas aventuras sexuais. “Como é que você descreveu tão bem aquela cena de homossexualismo?”, quis saber um leitor. “Treinando com os amigos”, respondeu ele. O livro faz parte de coleção da editora sobre pecados – o que lhe coube foi o da luxúria, mas por insistência dele. O que a editora lhe ofereceu primeiro foi o da preguiça. “Só porque eu sou baiano?”, reagiu ele, recusando.
João Ubaldo nasceu em Itaparica (BA) e tornou-se depois um cidadão carioca por afinidade – vivia no Rio, e tornou-se um personagem do Leblon, bairro onde morava. Tão personagem que tinha até um bar de “estimação”: o Tio Sam, no cruzamento das ruas Dias Ferreira e General Urquiza. O escritor tinha cara e fama de boêmio. Em 1994 teve uma depressão fortíssima e diz que tentou curá-la da forma que lhe pareceu mais conveniente: com álcool… Já bebia muito, passou a beber muito mais. Teve uma crise de pancreatite (inflamação do pâncreas) e quase morre. Ao deixar o hospital, tornou a beber. Um dia, em 2002, sentiu que a doença estava voltando, achou que aquilo significaria sua morte e rezou para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: “Se amanhã eu amanhecer sem náuseas, eu paro de beber”. Amanheceu sem, e desde então nunca mais tocou em álcool. O copo que todos viam na sua mesa era preenchido por guaraná diet.
João Ubaldo ia ao Tio Sam todo sábado e todo domingo. Sabedor disso uma vez eu o procurei, com um exemplar antigo de um dos seus livros, Sargento Getúlio, para pedir um autógrafo. Ele sentava numa das mesas da calçada. O avistei, ele sempre com aquele ar de quem está sorrindo – mas fiquei envergonhado de interrompê-lo e passei direto. Vai que ele pensava: “Ih, lá vem mais um aspirante a escritor pedir conselhos…”
Sargento Getúlio foi o seu primeiro sucesso, é um romance de 1971. Ganhou o Prêmio Jabuti de autor revelação e lhe rendeu comparações com Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. A partir dali ele já podia dar conselhos sobre como escrever. Quem lhe pedisse isso – diria ele muito depois, em 2011, em entrevista ao jornal Público, de Portugal -, responderia ao candidato a escritor que “desistisse”. Se ainda assim o camarada teimasse em virar escritor, diria: “‘Vá em frente, leia muito e todos esses lugares-comuns. Seja humilde, mas combine essa humildade com uma certa obstinação. O resto não é com você. É um mistério’”. Porque não há lógica no êxito de um escritor, dizia João Ubaldo: “Jorge Amado era ateu, mas, quando lhe perguntavam o que era necessário para ser escritor, nunca deixava de finalizar com ênfase: ‘Tem que se ter um pouco de sorte!’ Não sei se seria ‘sorte’ a palavra indicada, mas existe um imponderável qualquer, que eu não sei qual é”.
Ninguém sabe qual é, mas sobre um fato não pairam dúvidas: João Ubaldo Ribeiro mereceu o êxito que teve.