Em Foco 1309

O pensamento de Rogério Brandão, 35 anos de profissão, ex-presidente da Regional Nordeste da Associação Brasileira de Cancerologia, sobre o que é a morte a partir da declaração de uma paciente criança, tornou-se o tema do Em Foco do Diario do sábado, escrito por Silvia Bessa. Uma lição de vida que veio de quem pouco passou por este mundo. Uma lição que se aplica para lembrar os 30 dias da morte de Eduardo Campos e mais seis ocupantes do avião que caiu no dia 13 de agosto em Santos.

“Saudade é o amor que fica”

Completa-se neste sábado, dia 13, um mês da morte de Eduardo Campos e mais seis passageiros. Na intimidade das famílias e amigos, a data é só lembranças

Silvia Bessa

Tinha um dia na semana em que o cancerologista Rogério Brandão entrava na ala infantil do Hospital do Câncer de Pernambuco e os meninos começavam a chorar. Era o dia da injeção raqui na coluna lombar. Sabiam que a eles não era permitida anestesia local e ficavam se contorcendo antes de a agulha se aproximar da pele. Raimunda, uma enfermeira que auxiliava Dr. Rogério, sofria a todo minuto com dó dos pequenos mas segurava os bracinhos enfraquecidos cumprindo tristemente a obrigação. Cristiane, paciente de Petrolina com 11 anos, os surpreendia. Com um tumor cerebral, estava se tratando desde os 8.  Fechava os olhos e, com firmeza, dizia: “Vá, tia, vá”. “Já viu uma criança dizer isso?”, até hoje se pergunta Rogério Brandão, 35 anos de profissão, ex-presidente da Regional Nordeste da Associação Brasileira de Cancerologia. Cristiane dizia.
Um dia, contou-me o doutor, chegou antes das 7h no Hospital Português (no Recife) onde Cristiane estava internada e ouviu um sussurro: “Tio, às vezes minha mãe sai para chorar escondido no corredor. Quando eu morrer, eu acho que ela vai sentir muita saudade de mim”. O médico deu asas a ela. “Achei aquilo muito estranho. Uma menina falar em morte? A ideia que uma criança tem da morte é diferente dos adultos”, comentou comigo em entrevista semana passada, lembrando que eles veem na TV o boneco morrendo, sacodem o boneco e aí o boneco levanta como se nada tivesse ocorrido. “Na hora que Cris falou ‘quando eu morrer…’ me deu aquilo de perguntar: Minha filha, o que é a morte para você?”
Cristiane respondeu. “Tio, às vezes a gente vai dormir no quarto do pai da gente, na cama do pai da gente e no outro dia a gente acorda no nosso quarto, na nossa própria cama. Sabe o que acontece, tio?”, perguntou para ela mesma continuar. “O que acontece é que o pai vem, bota a gente no braço e nos leva para o nosso quarto, para nossa própria cama. Tio, não nasci para essa vida. Um dia, vou acordar na minha vida.”
Durante muitos anos, Rogério Brandão, profissional de mais de 25 mil casos, que convive com a morte desde quando era aluno de medicina, se negava a falar sobre o tema. “Ficava entupigaitado”. A palavra não existe, mas é a única que – diz ele – traduz o engasgo que tomava sua garganta. Pasmo, Rogério ouviu a sabedoria de Cristiane e continuava curioso quanto à definição dela para a saudade. “Mas, minha filha, e o que é mesmo saudade para você?”. Enfim, ela disse:
“Sabe não, tio? saudade é o amor que fica”.

Ainda hoje o médico solta um “ahhhh” ao repetir o diálogo com Cris pelos idos de 1987.
Conheci Cristiane sob um codinome, num momento pessoal de saudade. Foi por meio de um conto intitulado Anjo e assinado por Rogério Brandão, no qual li a história real da paciente “mais espiritualizada” que ele já teve. O conto foi reproduzido por milhares de sites que tratam de perdas brutais e ou luto.
Já o repassei para dezenas de amigos. Repeti que “saudade é o amor que fica” no ouvido de quem perdeu filho, pai, mãe, irmão, marido. Essa semana, ouvi dois lamentos  de saudades. E soube que dona Alzira, mãe do jornalista Carlos Leal, ou Carlos Percol (Guto, para os próximos), falava sobre a saudade enquanto assistia à TV:  “Parece que quanto mais feliz a gente fica, mais saudade a gente tem”. Era da felicidade que Percol lhe dava e da saudade que dona Alzira sente, sobretudo às vésperas do 30º dia da morte dele. Percol estava com Eduardo Campos e outras cinco pessoas – todas mortas no avião que caiu dia 13 de agosto, há um mês – para ser exata.
Longe da vida pública (e política), na intimidade das famílias, hoje dia de saudade mais intensa. Para as mães, pais, filhos, irmãos e amigos do ex-governador Eduardo Campos, de Carlos Percol, do fotógrafo Alexandre Severo e do cinegrafista Marcelo Lyra – os  pernambucanos.
À mãe Ana Arraes, à víúva Renata Campos, aos cinco filhos de Eduardo, ao irmão Antônio Campos, tios, primos e admiradores; à mãe Alzira, à viúva Cecília Ramos, aos irmãos Ana, Sandra, Carla e parentes de Percol; à mãe Rita Regina, a irmã Patrícia e familiares de Severo; à mãe Judite e ao pai Ildefonso, à viúva Paulina e filhos de Marcelo, ao irmão Guilherme… a eles, em especial, desejo que a frase do anjo Cristiane, paciente de Rogério Brandão, sirva de conforto. “Saudade é o amor que fica”.