Viver terror

A culpa é de Gilberto Freyre. Foi ele quem narrou, em 1955, As assombrações do Recife Velho em livro. Entre as histórias, a do doutor Dornelas que, por ser negro, era vítima do preconceito da capital pernambucana no final do século 19. As maldições do médico agora figuram em outro livro, o Do outro lado – A história do sobrenatural e do espiritismo, escrito pela historiadora Mary Del Priore. O repórter do Viver, Fellipe Torres, embarcou no mundo sobrenatural e o resultado foi uma página inteira de histórias de terror publicada no Diario desta segunda-feira. O jornalista pernambucano Roberto Beltrão, editor do site O Recife assombrado, contribuiu com uma entrevista onde afirma que o estado tem realmente um gosto pela coisa. O texto na íntegra pode ser lido abaixo. Sem medo.

Viver terror quadroPáginas do sobrenatural

Lenda urbana do Recife presente em livro de Gilberto Freyre integra obra de historiadora sobre  assombrações de todo o mundo

Fellipe Torres

Recife, fim do século 19. Como toda figura ilustre da sociedade, o médico Dornelas se vestia de maneira elegante. Por ser negro, era vítima recorrente de preconceito, sempre tachado de petulante. Certo dia, alguém cuspiu em sua cartola. Então, somente de olhar a saliva da agressora, disse: “Coitada da iaiá! Tuberculosa. Não tem um ano de vida”. E de fato a mulher viria a morrer. Dali em diante, doutor Dornelas passou a ser visto como alguém com poderes sobrenaturais. Depois de morto, tornou-se o espírito mais invocado nas sessões da Irmandade do Santíssimo Sacramento, centro espírita da época.
Narrado por Gilberto Freyre em 1955, no livro Assombrações do Recife velho, o causo pernambucano é resgatado pela historiadora carioca Mary del Priore em Do outro lado – A história do sobrenatural e do espiritismo (Planeta, 208 páginas, R$ 31,90), onde são reconstituídas as mais diversas crenças de contato com os mortos. Astrólogos, videntes, médiuns, cartomantes, exorcistas, curandeiros e outras figuras com supostas habilidades fantásticas têm a origem e a popularização investigadas. Para del Priore, a crença no fantástico está relacionada à compreensão do mundo, a uma certa compensação das injustiças do cotidiano e ao acolhimento dos desejos do povo.
Muito antes do episódio do médico Dornelas, a atmosfera pernambucana já flertava com a vida após a morte. Em 1845, estudantes da Faculdade de Direito do Recife criaram a “Filopança”, sociedade que organizava orgias inspiradas na literatura mórbida e romântica de Lord Byron. Esses rituais anteciparam certa “febre mística” da década de 1860, quando pessoas se reuniam em torno de mesas redondas para se comunicar com os espíritos.
Contribuía com esse imaginário coletivo uma série de fatores intrínsecos à época. Temas ligados à morte eram explorados em pinturas, esculturas, peças de teatro. O avanço da ciência, com o uso aperfeiçoado da eletricidade, da química, da ótica, a invenção do telégrafo e do próprio telefone instigaram a crença no “além”. Mas não era um modismo. A busca pelo sobrenatural resiste ao tempo, ao menos por aqui, onde ainda hoje habitam lobisomens, pernas cabeludas e papas-figos.

 

Entrevista: Roberto Beltrão

Há 15 anos, o jornalista pernambucano Roberto Beltrão se tornou caçador de histórias sobrenaturais. Editor do site O Recife assombrado (orecifeassombrado.com) desde 2000, é autor de três livros e uma história em quadrinhos sobre o assunto. Até o fim do ano, lança o Almanaque de mal-assombros, causos e lorotas, escrito em parceria com a folclorista Rúbia Lóssio.

Quando começou o interesse por assombrações?
Surgiu na década de 1990, quando um amigo me apresentou Assombrações do Recife velho, na época fora de catálogo. Fiquei fascinado com aquilo. Já conhecia a obra de Gilberto Freyre, Casa-Grande & senzala, Sobrados & mucambos, mas não aquilo. Descobri que aquelas histórias foram baseadas em pesquisa feita nos anos 1920, quando Gilberto trabalhava em jornal e pediu para o repórter Oscar Melo fazer uma série de reportagens sobre o tema. Por muito tempo, assombração era assunto de jornal, de caderno de polícia. Tive percepção que havia muitas histórias que faltavam ser contadas, como a da Perna Cabeluda, dos anos 1970.

Pernambuco tem vocação especial para o sobrenatural?
Sim, o imaginário popular daqui é muito forte. Há farta bibliografia sobre este assunto, como o estudo feito pelo folclorista Pereira da Costa. Quando passamos a interagir com as pessoas pelo site, muitas nos contavam histórias, tanto as tradicionais quanto algumas assombrações particulares. Costumo fazer palestras e sempre ouço novos causos. É um assunto incrível. Quanto mais você mexe, mais coisa aparece.