Em Foco 2810Um judeu cigano da bola foi o responsável pela Seleção brasileira conseguir bordar na camisa os primeiros títulos mundiais, de 1958 e 1962. Seu conhecimento de vida na Europa no período entre as duas guerras mundiais foi fundamental para moldar sua personalidade. Conhecido por não esquentar o banco por muito tempo e pela praga que rogou ao Benfica, Béla Guttmann é tema do Em Foco do Diario desta terça-feira, por Paulo Goethe

A ponta da estrela

Livro destaca papel do técnico húngaro Béla Guttmann na modernização do futebol brasileiro e sua influência para
o título de 1958

Paulo Goethe

Quando o francês Maurice Guigue apitou pela última vez no gramado do estádio Råsunda, diante de 49,7 mil espectadores, o Brasil se despedia para sempre do “complexo de vira-latas” no  mundo do futebol. A goleada de 5 a 2 sobre a Suécia, com os anfitriões aplaudindo de pé os novos donos da bola, foi resultado do talento individual de jogadores como Didi, Garrincha, Pelé e Vavá e, ao mesmo tempo, do conjunto montado pelo técnico Vicente Feola. Até aqui, tudo o que você leu já foi publicado centenas de vezes desde 1958. A novidade nesta página, em tempos de rejeição a estrangeiros no comando da Canarinho, é que a Seleção deve muito da sua primeira estrela a um húngaro: Béla Guttmann.
Nascido em Budapeste, Guttmann entrou para o panteão dos maiores técnicos de futebol do século 20 graças, principalmente, aos dois títulos da Liga dos Campeões da Europa conquistados com o Benfica nas temporadas de 1962 e 1963. A história deste judeu cigano da bola, defensor do jogo bonito, paternal com os atletas e explosivo no trato com os dirigentes, está contada no livro Béla Guttmann – Uma lenda do futebol do século XX, do jornalista alemão Detlev Claussen, lançado no Brasil em plena época de Copa do Mundo pela editora Estação Liberdade.
Ao longo de sua carreira, como jogador e técnico, Guttmann passou por 25 clubes em dez países diferentes. Em 1957, aos 57 anos de idade, desembarcou no Brasil a convite de Puskás, para dirigir o time do Budapest Honvéd, que contava ainda com Kocsis, Czibor e Lorant, para uma turnê na América Latina.
No Rio de Janeiro, o carrossel húngaro no exílio – os jogadores não quiseram retornar ao país temendo represálias do governo comunista após o levante de 1956 – bateu o Flamengo duas vezes (6 a 4 e 3 a 2), perdeu outra (6 a 4) e ainda foi derrotado por 3 a 2 para um combinado do time rubro-negro com o Botafogo.  Técnico e supervisor do São Paulo, Vicente Feola convenceu os dirigentes do clube paulista para contratar Guttmann. Feola ficaria apenas como administrador e pitaqueiro, uma espécie de Parreira da época.
No tricolor paulista, Béla Guttmann implantou uma revolução. Surpreendeu com o treinamento de duas horas diárias, pela manhã com os zagueiros, à tarde com os atacantes, e também alternadamente. Até o goleiro, que ninguém dava a bola, literalmente, também tinha sua cota de exercícios repetitivos. Demonstrando ou conversando, incutia nos jogadores as vantagens da troca de passes, das cobranças de faltas e escanteios e dos chutes a gol sem medo de errar.
Com Zizinho, 37 anos, como líder em campo, o São Paulo foi campeão paulista em 1957 com 13 vitórias, quatro empates e apenas uma derrota em 18 jogos, com 53 gols marcados e 24 sofridos.
“Muito pouca atenção se deu à equilibrada defesa do campeão mundial Brasil, cujo núcleo duro tinha sido formado por Guttmann no São Paulo: Mauro, Dino e De Sordi. No Santos havia contra eles um jovem adversário muito bem dotado: Pelé. O treinador da Seleção na Copa, Vicente Feola (chamado de ‘o gordo’), também vinha do São Paulo. Era, portanto, um beneficiário da revolução de Guttmann, e conhecia muito bem os jogadores do Paulistão. O sistema 4-2-4 ele trouxe na bagagem a partir do treinamento com Guttmann”, destaca Detlev Claussen no seu livro.
Para seguir a tradição de não ficar por muito tempo esquentando o mesmo banco, Guttmann pediu o boné e voltou para a Europa. Se percebesse que havia perdido o comando dos jogadores ou os dirigentes não cumprissem com o prometido, principalmente em relação aos pagamentos, partia para outro desafio. Em 1981, na cidade de Viena, na Áustria, o húngaro que testemunhou tantas revoluções e fez a sua dentro de campo se despedia da vida. No Brasil, ele pode ser visto na ponta de uma estrela. A primeira, da esquerda para a direita, em uma camisa amarela.

bela livro

*  Béla Guttmann iniciou a carreira como jogador em 1919 no Magyar Testgyakolók Köre, o MTK, clube da classe média judaica que buscava, através do esporte, ter acesso à sociedade liberal húngara. Na época do amadorismo, o atleta complementava a renda como professor de dança

* Em 1922, transfere-se para Viena, na Áustria, onde defende o Hakoah, outro clube judeu. Em 1924, a Áustria torna-se o primeiro país da Europa continental a ter uma liga profissional

* Em 1926, o Hakoah parte para uma excursão nos Estados Unidos. Em 1º de maio daquele ano, 46 mil espectadores viram o time austríaco enfrentar um combinado do New York Giants e Indiana Flooring, batizado com o nome de New York All Stars. Foi o maior público de um jogo de futebol no país, recorde só batido em 1977, quando o New York Cosmos de Pelé e Beckenbauer enfrentaram o Fort Lauderdale, de Gerd Müller, diante de 77.691 pessoas. O New York Giants contrata Guttmann, com salário de US$ 350

*  Em 1932, aos 32 anos, Béla Guttmann encerra a carreira como jogador. A liga de futebol norte-americana já estava decadente, principalmente depois da queda da bolsa de valores em 1929, que levou muitos clubes à falência

*  Retorna à Europa em 1933, onde treina vários clubes da Áustria e da Hungria até a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Passa o período do conflito escondido na Suíça

*  Em 1947, já sob o regime comunista, treina na Hungria o modesto Kispest, que conta com um meia-esquerda talentoso, de nome Ferenc Puskás. Os dois acabariam se estranhando e se reconciliando ao longo dos anos.

*  Em 1955, Guttmann comandava o Milan para a conquista do scudetto com uma campanha impecável, mas se desentendeu com os dirigente e foi demitido. Depois desse episódio, passaria a exigir em seus contratos uma cláusula que proibia seu clube de demiti-lo caso a equipe estivesse no topo da tabela de algum campeonato.

* Dirigindo o Benfica depois de ter sido campeão, um ano antes, pelo rival Porto, bateu o Barcelona  (de Evaristo de Macedo e Kocsis) em 1962 e o Real Madrid (de Di Stéfano e Puskás) em 1963 nas finais da Liga dos Campeões da Europa. Um feito e tanto para o time português e para o treinador, que havia descoberto um talento vindo da África, Eusébio

* Após o bicampeonato europeu,  Béla Guttmann pediu aumento de salário, negado pela diretoria do Benfica. O húngaro deixou o clube lançando uma maldição:  “Nem nos próximos 100 anos uma equipe portuguesa será campeã europeia e o Benfica não voltará a ser campeão europeu sem mim”. O Porto conseguiu sua taça, mas o Benfica já foi a oito finais em perdeu todas elas.

* Em fevereiro deste ano, o Benfica inaugurou uma estátua de Guttmann no Estádio da Luz, ao lado das esculturas do ídolo Eusébio e de Miklós Fehér, atacante húngaro que faleceu em campo quando defendia os Encarnados em 2004. Era para acabar com a “praga’”, mas em maio o Benfica a Liga Europa para o Sevilla.

* Guttmann também foi atingido pela “praga”. Mesmo treinando o Porto, Peñarol do Uruguai, a Seleção da Áustria e clubes da Suíça e Grécia, inclusive na década de 1970, nunca mais ganhou nenhum título.