Em Foco 2011

No dia da morte de Zumbi dos Palmares e do apelo por mais consciência, que a data sugere, o país tem a obrigação não apenas de refletir sobre a medida do esforço empreendido para vencer a exclusão e a desigualdade como ampliá-lo. É o que defende Luce Pereira, autora do Em Foco do Diario desta quinta-feira.

Dívida que não prescreve

No Dia Nacional da Consciência Negra, país deve refletir sobre se tem feito o devido esforço para reparar prejuízos causados ao povo de Zumbi dos Palmares

Luce Pereira

As grandes dívidas dos países com a parte mais lamentável do seu passado costumam custar caro, mas nem todos encaram a necessidade de saldar o débito com a urgência que a causa exige. O Brasil, por exemplo, ainda não conseguiu deixar de ser lembrado pelas atrocidades cometidas contra os negros, assim como a Alemanha vive tentando reparar os terríveis danos provocados pelo regime nazista, só que com muito mais afinco e permanentemente, a ponto de continuar aumentando o número de beneficiados com o pagamento de indenizações. Pessoas obrigadas a viver em guetos durante o Holocausto, com direito a receber do Estado quantias mensais que vão de 270 a 300 euros, eram 50 mil e recentemente passaram a 66 mil, isso sem falar nas outras modalidades de assistência dada a título de diminuir a vergonha herdada do maior pesadelo vivido pela humanidade. Hoje, Dia Nacional da Consciência Negra – que não por acaso é o da morte do maior símbolo da resistência ao escravagismo, Zumbi dos Palmares –, não poderia ser mais apropriado para discutir se o Brasil está pagando em dia, inclusive, os juros desta dívida.
Para os movimentos sociais ligados à questão, não só não está pagando na medida em que deveria como o faz numa velocidade de quem deve pouco e a credores sem pressa para receber. Abolicionistas de enorme brilho como foi o pernambucano Joaquim Nabuco também fariam, certamente, coro a este pensamento, porque se transformaram na própria luta em defesa da libertação dos escravos e puderam dimensionar o sofrimento a que foram submetidos. Apesar das conquistas, digamos, “reparadoras”, como foram o regime de cotas nas universidades públicas e a criminalização do racismo, os negros continuam sendo vistos sob o prisma de estereótipos terríveis, amargando salários inferiores e julgados pelas dificuldades históricas, em lugar de serem beneficiados por elas.
O que se poderia deduzir é que o pequeno número de negros na política, por exemplo, evidencia o quadro desfavorável de ascensão social e econômica, do mesmo jeito que não se observa mudança substancial na forma estereotipada de o cinema enxergá-los: ainda são as personagens vitimadas pela violência ou cooptadas pelo crime, que inspiram insegurança ou se mostram alvo de olhares enviesados de gente disposta a manter (embora não declare) muros invisíveis nas relações pessoais e profissionais com elas.
Mesmo a política de cotas no ensino superior público enfrenta, desde o começo, reações que insistem em enxergar a medida como tiro no pé, já que nasceu com a possibilidade de trazer a reboque carga velada de preconceito capaz de gerar mais exclusão, em lugar de mais igualdade. No entanto, fica claro que o simples fato de o debate em torno dessas circunstâncias crescer em número e intensidade, ajuda a acelerar mudanças reais de perspectivas, a partir das quais o débito poderá, de fato, diminuir. Esta é uma dívida que não prescreve, mas nem por isso pode ser liquidada a perder de vista.
No dia da morte de Zumbi dos Palmares e do apelo por mais consciência, que a data sugere, o país tem a obrigação não apenas de refletir sobre a medida do esforço empreendido para vencer a exclusão e a desigualdade como ampliá-lo. Já dos movimentos em luta pelos direitos e valorização dos negros, espera-se o trabalho de lembrar insistentemente ao Brasil que sua identidade tem a marca de um sofrimento a partir do qual forjou-se povo único e sem o qual jamais poderia ser chamado de “mulato inzoneiro”, na poesia de Ary Barroso.