Em Foco 1412

Nascida na Ucrânia no dia 10 de dezembro de 1920, Clarice Lispector viveu parte da sua infância no Recife. No dia 9 de dezembro de 1977, ela faleceu no Rio de Janeiro. Datas tão próximas que foram lembradas à altura da importância de sua obra como escritora e jornalista. A passagem de Clarice por Pernambuco precisa ser preservada, a começar pelo lugar onde morou, na Praça Maciel Pinheiro. Uma história ressaltada por Luce Pereira no Em Foco do Diario deste domingo.

Quase de verdade

Batalha para transformar em espaço cultural o sobrado onde viveu a escritora Clarice Lispector no Recife ainda não foi vencida

Luce Pereira

A degradação de tudo no entorno da Praça Maciel Pinheiro (Boa Vista) cresce a olhos vistos para não destoar do resto do Centro do Recife, desfigurado pela falta de visão, competência e vontade política dos gestores. Mas, na última quarta-feira, o abandono pareceu ter ganho peso muito maior, ao menos para quem tornou-se fã ardoroso de Clarice Lispector, uma das maiores escritoras do século 20. O sobrado número 387 da praça, onde passou parte da infância, continua à espera do futuro, quando poderia, no dia em que o Brasil lembrou os 37 anos de morte, já estar transformado em moderno espaço cultural com a grata missão de manter evidente a importância dela para a cidade.
Este esforço vem de longe, mais precisamente da época em que o PT começava a dar as cartas na Prefeitura do Recife. Cheguei a acompanhar a sobrinha-neta da escritora, Nicole Algrante, ao gabinete da então secretária de Gestão Estratégica e Comunicação do prefeito João Paulo, Lygia Falcão, a quem a ideia foi apresentada. Apesar de a conversa não haver rendido mais do que vaga promessa de estudo, o projeto não ficou abandonado. Em 2011, a proprietária do imóvel, a Santa Casa de Misericórdia, acatou o desejo da família e encerrou o contrato com o último inquilino, abrindo caminho para a criação do Memorial Casa Lispector.
Acontece que, no Recife, a estrada a ser percorrida por um projeto cultural tem o tamanho da simpatia das gestões pela área, cada uma se superando para transformá-la em campo onde se semeiam apenas intenções – sobretudo a última e a atual. Daí porque pode ser que muitas datas alusivas a nascimento e morte da escritora ainda encontrem as portas do imóvel fechadas, o entorno dele lembrando uma cidade sem compromisso com passado ou futuro. A sobrinha segue em busca de patrocínios e eles não podem existir sem o processo de tombamento, geralmente outra dificuldade enfrentada por quem luta para não ver raízes virarem pó. Neste caso, a Santa Casa estuda se é mais rápido o tombo municipal, estadual ou federal.
A propósito, é pertinente dizer que se a antiga casa de Clarice for transformada em espaço à altura da obra dela, será necessário recuperar todo o cenário à volta. Da fonte onde se recostava para apreciá-lo ao casario que lhe ficou na memória, em lembranças depois transformadas em literatura. Naturalmente, turistas que escolhem beber nas fontes da cultura esperam apreciar os frutos dela a partir de condições mínimas de segurança, higiene e conforto – tudo o que não existe naquela área, até hoje. A bem da verdade, em nenhuma rua do Centro.
O imóvel, sim, é sob medida para o projeto, com seus três pavimentos de tamanho considerável. O térreo tem 217 metros quadrados e abrigará exposições temporárias, além de lojas de produtos alusivos à obra ou à autora, café e fotos da vida da família no Recife; para o primeiro andar (169 metros quadrados), imaginou-se um ambiente multimídia destinado à releitura dos contos; e para o segundo (153 metros quadrados), escada interativa, biblioteca, salas para oficinas de literatura e cinema, além de espaço de convivência.
Clarice Lispector merece, assim como mereceriam virar pontos obrigatórios para
turistas apaixonados por cultura imóveis onde nasceram ou viveram outros grandes nomes da literatura nacional, a exemplo de João Cabral de Melo Neto. Nem mesmo o Espaço Pasárgada, em que foi transformada a casa de Manuel Bandeira, na Rua da União (Boa Vista), consegue fazer jus à musculatura da obra, ainda sendo o poeta um dos maiores do Brasil. Que a esperança da cidade de ter um gestor comprometido com a cultura não seja extinta como aquela do verso de Cotovia.