Em Foco 2202

Em tempos de início do pagamento de Imposto Predial e Territorial Urbano, é oportuno falar das péssimas condições das calçadas no Recife e do sentimento de orfandade da população. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco da edição de domingo, escrito pela repórter especial Silvia Bessa. A arte é de Jarbas.

Recife, a “buracolândia”

Silvia Bessa  (texto)
Jarbas  (arte)

Foi só desviar o pensamento do trajeto por um minuto e quando viu dona Auxiliadora deu um tropeção numa calçada de péssima qualidade, estendeu o corpo no chão na Rua Setúbal e, ao recobrar a razão, tinha quebrado dentes e mandíbula. Dona Eulália já nem sabe direito quantas vezes caiu, se três ou quatro. A última foi na Rua Sérgio de Brito Melo. Ralou todo o rosto. Cristina somou ao longo de anos dez pequenas torções ao transitar por passeios públicos. A repetição gerou fraturas graves nas pernas. São pedaços de cimentos quebrados, pedras e ladrilhos fora do lugar, raízes de árvores expostas que impedem a caminhada livre. “Me sinto como se vivesse numa terra sem lei”, desabafa dona Eulália Vasconcelos, 72 anos, moradora do bairro de Setúbal, Zona Sul do Recife. Ela, que parece vaidosa com sua disposição e independência, passou a andar amedrontada ao sair para fazer compras perto de casa ou para efetuar pequenos pagamentos bancários.
“O nome do Recife deveria mudar para buracolândia”, sugere o fisioterapeuta Rogério Antunes, proprietário de uma grande clínica de tratamento de contundidos com filiais em Setúbal e no bairro do Torreão, que atende cerca de duzentas pessoas por dia. O especialista afirma que é comum receber novos pacientes vítimas de calçadas. Tem quem busque apoio médico em função de fraturas de joelho, tornozelo, punho e de uma variedade de outras enfermidades. “Trata-se de um problema grave porque o Brasil é um país que está envelhecendo”, alerta. Muito se fala sobre qualidade de vida, mas as condições da cidade não acompanham os discursos – essa é a questão.
O assunto faz parte de uma lista de temas de interesse comunitários discutidos vez por outra com moradores de Setúbal e de Boa Viagem sob o incentivo da ex-bancária Maria Cristina Henriques, uma das diretoras da associação de moradores dos dois bairros. Paciente de Rogério Antunes, Cristina, a senhora que contabiliza mais de dez torções, costuma receber os relatos de amigas e amigos reclamando sobre o caos nas calçadas. Outro dia registrava o primoroso relatório oral do chefe de segurança de um hotel Dagoberto de Oliveira, que está no Recife desde outubro do ano passado e que repassou à reportagem o seu relato: “Caminho todos os dias cerca de dois quilômetros e meio de casa até o meu trabalho e lhe digo que não há uma calçada sequer em perfeitas condições. Sou de São Paulo e desde que cheguei nessa cidade acho isso inaceitável”.
Maria Cristina Henriques chegou até a procurar o Ministério Público para debater o tema. É indignada com as calçadas “horríveis, sem padronização, com aclives e declives”. Mais ainda com a postura da prefeitura, que – segundo ela – afirma que zelar e consertar calçadas não é sua a responsabilidade. “Mas temos uma consultoria que garante ser responsabilidade do município a parte da manutenção, sim. A obrigação do proprietário se dá na ocasião da construção do imóvel. Ponto”, diz, citando o Estatuto da Cidade.
O caminhar no Brasil não é tratado como prioridade e a a exclusão da calçada do sistema de mobilidade é a prova disso, declara o sociólogo e consultor da Associação Nacional de Transportes Públicos Eduardo Alcântara de Vasconcellos. Tanto que o ato de caminhar não é tratado como assunto público, mas sim privado, pontua. A calçada, define ele, “é terra de ninguém”, teorizou há pouco em interessante artigo para o blog da mobilidade urbana do Diario.
Nunca essa discussão sobre manutenção de calçadas foi assumida de forma compromissada e eficiente por gestores do Recife. Um dia alguém precisa assumi-la total ou parcialmente. O que não se pode aceitar é que o cidadão, o caminhante, se sinta à deriva, desprotegido de qualquer lei, orientação, fiscalização e cobrança. Sejam esses cidadãos de bairros mais humildes ou de Boa Viagem, onde o IPTU é dos mais altos.