Em Foco 2402
Estiagem e crise de abastecimento ameaçam a dignidade e independência de milhares de famílias. Já são setenta os municípios de Pernambuco que decretaram estado de emergência, segundo decreto publicado no dia 7 de fevereiro. Tema do Em Foco do Diario desta terça-feira, por Silvia Bessa, a partir de exemplo de família de Barreiros, na Mata Sul do estado. A foto é de Alcione Ferreira.

Água: questão de dignidade

Silvia Bessa  (texto)
Alcione Ferreira  (foto)

Água limpa, banho farto e vaso sanitário foram luxos que Zenicláudia, Alexandre, Vanisson, Vinícius e Vítor passaram a ter há pouco tempo. Menos de dois anos. “Uma mudança na nossa vida. Sei que um ou outro menino ainda vai ao redor da casa quando está com necessidade fisiológica, mas melhorou muito a nossa situação”, contou Luciene Maria da Silva, a mãe do “comboio” de crianças, como ela definiu. “Mas, mãe, eu esqueço porque estou aprendendo”, remendou Alexandre, envergonhado talvez com a revelação indiscreta. A família morava à beira do Rio Una em Barreiros, Mata Sul de Pernambuco a apenas 100 quilômetros do Recife, até ser expulsa por uma enchente e ganhar uma casa com “água encanada e tudo”.
A oferta de água promoveu uma grande transformação cultural na rotina de Luciene e filhos. O banho, coletivo por uma questão de praticidade daquela mãe, melhorou sobretudo a saúde deles. “Não têm mais pereba e a roupa está limpa toda hora”, contou a mãe, que vivia na moradia doada pelo governo do estado com menos de um salário mínimo, dinheiro oriundo do programa Bolsa Família de quatro filhos. De tão incorporada à rotina que com frequência a existência dela se torna imperceptível, a água na casa de Luciene é a representação do papel desse precioso recurso natural na vida das pessoas. Em tempos de estiagem e baixa de reservatórios, a história dos Silva se reveste de significância.
Certo dia Antônio Barbosa, sociólogo da Articulação do Semiárido (ASA) e coordenador na época do Programa Uma Terra e Duas Águas, disse-me o seguinte. “A vida muda com o acesso à água. As pessoas ganham dignidade, se sentem mais valorizadas e, quem não tem nada, faz muito com pouco”. Não é uma frase que se esquece. Falando do semiárido, onde a seca tem sido ainda mais cruel para tantos nordestinos, Barbosa afirmava que, com o acesso à água, as pessoas se tornam muito mais independentes, em especial no meio rural. Troco a expressão por “em especial, no meio mais pobre”. Lembrava ele, e é bem verdade a se tirar pelo que se vê quando se anda na zona rural do Sertão, que os cidadãos deixaram de pedir ao fazendeiro para usar o açude. Foi uma independência adquirida na última década, principalmente com a expansão das cisternas, se considerado o Sertão.
Já são setenta os municípios de Pernambuco que decretaram estado de emergência, segundo decreto publicado no dia 7 de fevereiro e assinado pelo governador Paulo Câmara. De 173 no total, 116 cidades passam por algum tipo de rodízio de abastecimento de água, informou a Compesa. A crise na Região Metropolitana do Recife foi revelada na semana passada, no momento em que gestores da Compesa admitiram o uso do volume morto da Barragem de Botafogo, que fica em Igarassu. O assunto é tema de reunião que acontecerá hoje entre Câmara e o presidente da Compesa, Roberto Tavares.
De ponta a ponta do estado, carros-pipa são requisitados. Há família que gastam mais de R$ 200 por mês para ter a água necessária para o básico. Quem não pode, recorre à compra de água em baldes. Em Santa Cruz do Capibaribe (Agreste), um senhor chegou a fazer uma cota de R$ 7 mil com outras cinco famílias para construir um poço artesiano. Só para ilustrar.
A seca, sempre ela rondando as notícias da região nordestina, amedronta milhares de famílias de novo. Preocupa quem está na capital, na Zona da Mata, Agreste e Sertão. A estiagem impacta tanto na saúde das famílias quanto na fartura da comida na mesa. A falta de água para a plantação e os animais, e nas torneiras de forma geral repercute ainda sobre a independência da população diante dos mais ricos, das instituições e ameaça a dignidade das pessoas. Porque, nos momentos de fartura de chuva e de reservatórios cheios, esquece-se que o recurso mais abundante do planeta – a água – é finito.