Em Foco 0603

Mendigos enchem ruas e outros sinais da crise, em Madri, mostram que a Espanha ainda não conseguiu acertar contas com o seu pior inimigo. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta sexta-feira, por Luce Pereira. A intervenção artística sobre foto é de Blackzebra.

O “touro” que ainda falta vencer

Luce Pereira  (texto)
Blackzebra  (arte)

Por natureza, turista é uma criatura desatenta a realidades, sobretudo em relação às duras, que, de fato, só pesam nas costas de quem as enfrenta todos os dias. No entanto, ficar indiferente nem sempre parece possível quando a economia do próprio país do visitante navega por mares turbulentos, como se mostra o caso do Brasil. Ao se deparar com os reflexos da crise lá fora, logo os brasileiros experimentam a nada agradável sensação de que podem viver o mesmo pesadelo e então o olhar muda, torna-se mais cuidadoso. Foi assim comigo, em Madri (Espanha), embora, também por natureza, eu veja sempre pelo viés jornalístico, enxergando notícia em tudo.
Recentemente, desembarquei na bela capital espanhola para uma estada de dez dias, depois de vencer bravamente o desconforto de nove horas de viagem na classe econômica da TAP (cadeiras com espaço exíguo, comida de péssima qualidade…), incluindo uma cansativa conexão em Lisboa (Portugal). No entanto, os reflexos da travessia já desapareciam na chegada, à noite, ante a exuberância e a efervescência nas ruas de Madri, capital que passei a considerar a melhor relação custo/benefício na Europa. Mas amanheceu …
À luz do dia, a vida madrilenha enche os olhos de qualquer turista, com a cidade revelando seu esplendor histórico e arquitetônico e a eterna disposição dos habitantes para aproveitar cada quarteirão, num vaivém incessante (parece um povo que mora mais nas ruas do que em casa). Contudo, eis que “o outro lado”, aquele que não combina com as expectativas e o espírito de nenhum turista, aparece com força de ducha tão gelada quando a temperatura. Mendigos se espalham pelas vias de maior movimento e disputam a atenção dos passantes com cartazes nos quais expõem as dificuldades enfrentadas a partir do desemprego – ou simplesmente se quedam mudos, rostos amargurados.
Chamava-me a atenção uma senhora de 83 anos que chegava muito cedo e sentava-se no batente do imóvel ocupado por uma instituição religiosa, na Gran Vía, de onde só saía à noite debaixo de um frio medonho, lá pelos sete graus. Na véspera da volta ao Brasil, fui conversar um pouco, oferecer pequena ajuda. Chama-se María Concepción Martins González, era “modista”, mãe de dois filhos, tinha um irmão no exército espanhol, que acabou assassinado. Tão bonita quanto distinta, não pedia nem através de cartaz nem de palavras. As esmolas vinham, certamente, pela disparidade entre a fidalguia e a condição de mendicante. Maria diz que a crise lhe tirou quase tudo, ainda mantinha o telefone (número que me deu, dizendo para fazer contato, numa próxima ida a Madri), mas precisava bater ponto alí e na Plaza  de España, para poder “pagar o solo”, a casinha nos arredores da cidade. Nem lembra mais com exatidão de como era a vida antes da derrocada financeira.
Ao longo da Gran Vía, na Calle Arenal e em várias ruas do centro, lá estão eles, misturados a gente jovem que protesta contra a crise. A Puerta del Sol abriga todos e nunca falta do que se ressentir, porque a política está sempre a fornecer motivos. É ela a principal matéria-prima do humor ácido que alimenta programas de rádio. E quando o turista acha que já viu sinais suficientes da crise e se senta em um bar/restaurante para se recompor de um dia inteiro de andanças, eis que há apenas um garçom para dar conta da clientela. Os empregos sumiram e os sobreviventes precisam se virar em vários para segurar o seu. É por esta compreensão que a maioria dos frequentadores se mantém paciente, esperando por um pedido que geralmente demora muito a chegar à mesa. E sem a qualidade esperada, claro.
O pessimismo nunca serviu para identificar os madrilenhos, mas ele se reflete no trânsito nervoso, nos poucos sorrisos dirigidos ao turista (afinal, a única indústria que se mantém pulsante), no desencanto de quem vive de mostrar as belezas da cidade e da vizinhança. Todos queixosos dos baixos salários e da disparidade com a vida nababesca de políticos, da realeza e de altos funcionários do Estado. Então, demonstremos solidariedade diante do “touro” que a Espanha ainda não conseguiu vencer, pois, afinal, por aqui, aprendemos que eles sempre podem ser mais ferozes.