Em Foco 0803

José Linaldo, psicólogo e capelão hospitalar, é do tipo de ombro amigo que todo cidadão ou família precisa no momento da doença. Sua experiência de apoio emocional nesta área tão delicada, sem questões religiosas, é o tema do Em Foco do Diario de Pernambuco deste domingo, por Silvia Bessa.

O último desejo de um homem

Silvia Bessa  (texto)

Quando no leito de morte estiver, qual será seu último desejo? Algo efêmero ou duradouro? “Quero uma Coca-Cola”, disse uma senhora que jamais foi esquecida. “Traga”, sugeriu o psicólogo e capelão José Linaldo de Oliveira. “O senhor é louco?”, perguntou a médica de plantão. A paciente sabia que não lhe restava muito. “Por favor, só uma Coca-Cola”, insistiu diante dos que estavam ao seu redor. “E se for light? O efeito emocional da Coca-Cola será imenso para ela”, considerou o capelão, com a voz na medida certa para convencer. Alguém se apressou em comprar. Ela segurou firme a lata com os cinco dedos. Escorou-a no colo por um instante. Levantou os olhos e foi imperativa: de abrir o plástico do canudo, não abria mão. O prazer de tirar o lacre igualmente era seu. Só seu.
“Quanto custou? Dois, três, cinco reais? Eu pago”. Alguém, jurando que estava sendo gentil, respondeu “não, não, vozinha”. O capelão deu dois passos à frente para pegar a nota enfiando mais do que depressa no seu bolso. “Ela havia gerenciado toda uma vida. Naquele momento, ela se realizou outra vez”, pensou. Em quinze ou vinte dias, a senhora faleceu.
Emprestou o ouvido mil vezes. Há apenas três meses passava por uma técnica de enfermagem que chorava pelos cantos. “É que meu bebê está morto há dois dias. Está na minha barriga, mas estou com medo de dizer e perder o emprego”, revelou-lhe Clarissa Costa, de 28 anos, a quem encontrei nesses dias no Hospital D’Ávila, no Recife, onde o psicólogo e pastor José Linaldo trabalha desde 1996. Pasmo, ele tomou providências médicas e a atendeu.
Ninguém me contou: eu vi seis pessoas aguardando o horário de visita na sala de estar na UTI geral do mesmo hospital. Ele fez as boas-vindas (achei que jamais o feito seria possível, mas talvez seja porque vi seis pessoas sorrindo ante o tenso encontro com o doente). Dizia: “Lave as mãos assim (ensinou). Tocar no paciente pode. O nível de cognição é mais lento, mas…”, explicava antes de afirmar que o paciente escuta porque o ouvido é o “último órgão do ser humano que se apaga”. Um senhor resolveu atender ao telefone e interromper: “Não, não pode. Não posso fazer nada, não pode”, afirmava com firmeza no celular para a sobrinha, e filha do doente da UTI. Linaldo, o capelão, meteu-se na conversa para amenizar a situação: “Pode, pode”. “Ela quer falar com o médico”. O capelão: “Então, vamos ao menos tentar. Talvez possa”. Dona Maria do Socorro concordou balançando a cabeça para lá e para cá. Irmã gêmea de Maria do Carmo, 52 anos, fazia quatro meses que frequentava o lugar. “Assim é mais fácil suportar os problemas”.
Na rede particular de hospitais, não há apoio emocional igual ao prestado por José Linaldo de Oliveira. A seu favor, ele conta com a graduação em psicologia, em teologia, a pós-graduação em neuropsicologia, o exercício como escritor (ele acaba de lançar Um ombro amigo: ajuda que bem do lado, impressão própria) e a sua experiência como pastor presidente da Igreja Batista Central do Recife. “Acho que o pastor reduz muitos ruídos na relação com a família”, disse o chefe da UTI geral do D’Ávila, Gustavo Torres, que atua há 12 anos na unidade. Questões religiosas não fazem parte das conversas. “Aqui não é uma igreja”, explicou-me.
Sempre achei que fosse óbvia a presença constante e obrigatória de um ouvinte, psicólogo, pastor, padre ou alguém com habilidade suficiente para prestar apoio no delicado momento hospitalar. Não é para muitos gestores, por infelicidade de quem sofre nos corredores. Um ombro amigo e especializado para atender nesse caso é raro e disputado entre mil pacientes e familiares – quando há. O cidadão gosta de falar da humanização da saúde. Para mim, humanização é estar atento a cada caso, ou atender ao chamado de inúmeros como se fosse o único. É preparar o corredor, recomendar à equipe médica e familiares que se levantem, se já não houver jeito e um corpo morto tiver que passar por ali. Porque é assim que o capelão tenta mostrar respeito à pessoa.
Desconheço o pedido de vocês para caso estejam num leito do hospital ou ao lado de quem se ama na porta de uma UTI, mas sei do meu desejo: quero um ouvidor dedicado, que me entenda mesmo que não haja palavras.