Em Foco 1203

Escalada de agressões deve ser repudiada por todos os partidos e movimentos, para que amanhã não tenhamos que encarar o problema à luz de uma tragédia. O ódio coletivo já é tratado como uma patologia. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta quinta-feira, por Vandeck Santiago. A arte é de Rafael.

Os brutos odeiam bolo

Vandeck Santiago (texto)
Rafael (arte)

Em que momento a brutalidade se instalou de forma tão ostensiva em nossas discussões políticas? Quando foi que o debate escancarou as portas para os atos físicos de ódio seguidos de uma retórica que fala em “dar porrada” como quem apresenta seu principal argumento? Até onde vai este fenômeno novo em nossa política de odiar o outro que pensa diferente como se desejasse que ele seja exterminado?
Nas eleições de 1989 uma amiga minha, que morava num condomínio de classe média alta em Aldeia, torcia por um dos candidatos e colocou uma bandeira do partido na varanda. No outro dia, quando acordou, nem sinal da bandeira. Pôs novamente. E mais uma vez, ao acordar nem sinal da bandeira. No terceiro dia, a mesma coisa. Que ódio faz uma pessoa entrar na varanda de um estranho (ou não, talvez fosse amigo) para arrancar uma peça que é indicativo da preferência do outro, arriscando-se a ser flagrado em gesto tão estúpido? Minha amiga pensou em ficar acordada a madrugada e a manhã inteira, só para flagrar o ladrão de bandeira. Sugeri que ela fizesse diferente: que deixasse uma fatia de bolo e um copo de leite ao lado da bandeira. Como uma forma de rebater a brutalidade com uma gentileza. Ela fez isso. No final o candidato da minha amiga acabou derrotado, mas desde aquele dia do bolo e leite nunca mais o ladrão levou sua bandeira (se tivesse levado, eu iria recomendar que procurasse a polícia, porque não se pode tratar os brutos com gentileza mais de uma vez).
Para o psiquiatra forense Guido Palomba, especialista no assunto, o ódio coletivo é uma patologia – “A única forma de contágio de doença mental”, afirma. Lembro do pessoal que queria quebrar tudo naquelas manifestações de junho de 2013. Vistos coletivamente, pareciam uma turba enfurecida; quando a gente os identificava individualmente, muitas vezes a imagem deles (a vida que cada um levava, o que faziam, como se relacionavam) não batia com a brutalidade dos gestos que cometiam. Entra-se aí naquele argumento que todos conhecemos: dentro de uma coletividade, o camarada pratica atos que sozinho nunca cometeria.
Temos visto nas últimas semanas uma série de atos agressivos e doentios. Teve até o caso de um cidadão (em Chapecó) que, à luz do dia e à vista de todos, invadiu um apartamento para arrancar uma bandeira do MST que estava pendurada na janela. Atentem para a diferença simbólica: naquele exemplo que citei de 1989, era na surdina, para não ser visto. Neste caso de agora, o camarada não fez questão nenhuma de ser visto. Teve o caso também do cidadão que levou a mulher para tratamento de câncer em um hospital, e foi vaiado de forma tão agressiva que precisou deixar o local – tudo isso porque ele fora ministro do governo do PT. Teve ainda o acontecimento em Belo Horizonte, em que o veículo do psicanalista Rafael Paiva tinha um adesivo da presidente, com os dizeres “Coração Valente”, após o panelaço de domingo amanheceu manchado de tinta e com o capô riscado.
Nos casos que mencionei, os alvos têm sido um só. Mas o importante no raciocínio não é o alvo – é o gesto. Se as vítimas desses atos fossem tucanos, elefantes, andorinhas ou o que seja, a condenação seria a mesma. Foram condenáveis, por exemplos, os atos que impediram a blogueira cubana Yoani Sanchez, de falar quando esteve no Brasil, em 2013. Yoani é crítica do governo cubano, e os que tentaram impedi-la de falar no Brasil (e conseguiram, em alguns casos) eram defensores do regime de Cuba. Todos estes atos, além da estupidez em si que carregam, atrapalham mais do que ajudam aqueles e aquilo a quem supostamente creem estar ajudando. Devem ser encarados por todos nós como aquilo que são: gestos reprováveis e vergonhosos, e às vezes crime (é o caso da depredação do bem alheio).
A questão é que não importa se você é vermelho, amarelo, azul, rosa, arco-íris. As regras da convivência civilizada são as mesmas para todos. E nenhuma delas combina com o ódio.