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“O mais importante é que a gente aprenda as lições da velha prostituta grega, a Democracia, e deixar todo mundo ser como é. Ninguém pode cobrar nada de ninguém – como cobraram de Caetano Veloso um engajamento político no momento atual – porque nenhum indivíduo pode ter posições estáticas. Só quem não trabalha não erra, tem que escorregar um dia, ninguém é Deus. As pessoas têm as suas medidas e, quando não são camicases, vão até onde sentem que podem aguentar”.
A declaração acima, que poderia ter sido postada nas redes sociais nos momentos divididos do Brasil de hoje, estava impressa na edição do Diario de Pernambuco do dia 9 de julho de 1978, um domingo. A autora era uma mulher de 33 anos, 1,55 metro de altura, três filhos, um desquite e um grande amor. Elis Regina, que se estivesse viva completaria hoje 70 anos, dava entrevista ao Viver porque o Recife estava na turnê do show Transversal do Tempo. Quando a edição foi às ruas, ela já havia se apresentado, na sexta-feira e no sábado, no Teatro de Santa Isabel, com o novo marido, o pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano, e banda.
Cabelos curtos, pele bronzeada, Elis estava bem-humorada para o encontro com a repórter Luzanira Rego e o fotógrafo Arlindo Marinho. Admitia que estava mudada, canalizando a sua conhecida birra para alvos mais políticos: “Depois de 14 anos sentada na janela da vida, já não há muito para contar, até o dom da animosidade ficou mais calmo. Hoje em dia já não tenho tanto medo da violência e da prepotência. Agora, entretanto, elas já não me provocam reações violentas. O negócio é não esquentar a cabeça, senão a caspa vira mandioca”.

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“Enterrada” duas vezes no Cemitério dos Mortos-Vivos do Cabôco Mamadô, criação do cartunista Henfil – ambas em 1972, por sua colaboração com os militares na Olimpíada do Exército e na convocação para a população cantar o Hino Nacional no dia 7 de setembro – , Elis Regina prolongou sua estadia em 1978 no Recife para comparecer, na segunda-feira, a uma cerimônia religiosa presidida pelo arcebispo de Olinda e Recife, dom Helder Camara, em apoio ao estudante Edval Nunes da Silva, o Cajá, preso desde maio acusado de ações subversivas. Elis cantou na igreja para mais de 1,5 mil presentes, mas não quis conversar com os repórteres. “Já basta estar aqui”, limitou-se a dizer. Na capa do Diario, a foto dela e da atriz Leda Alves com dom Helder, que recebeu de presente um LP autografado.
Hoje sociólogo e atuando na Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife, Cajá disse que teve acesso depois ao relatório feito por agentes do Dops sobre o comportamento da cantora, que mostrava seu comprometimento político em plena ditadura. Elis também enviou-lhe uma carta, com papel timbrado do Hotel Othon. No show da sexta-feira, ela havia dedicado o show ao preso político. Repreendida pelos órgãos militares, no sábado driblou a censura fingindo chamar o baterista da plateia ao palco: “Vem cá, já. Não posso começar o espetáculo sem você”. Os bons entendedores sacaram o recado. Em 1982, Elis virou uma estrela. Nunca se encontrou pessoalmente com Cajá.
Este episódio está registrado na nova biografia da cantora escrito pelo jornalista paulista Julio Maria, Elis Regina – nada será como antes, lançado neste mês de marco para marcar as sete décadas da Pimentinha. A cantora voltaria a falar de Henfil, mas citando-o na música O bêbado e a equilibrista, hino da volta da democracia.

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