Em Foco 2603

Medida dos ministérios de Políticas para a Mulher, Direitos Humanos e Saúde promete melhoria no tratamento à mulher agredida sexualmente. Agora, a coleta de provas deste tipo de violência poderá ser feita em serviços públicos de saúde credenciados ligados ao Sistema Único de Saúde. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta quinta-feira, por Silvia Bessa. A foto é de Teresa Maia.

À vítima, atendimento digno

Silvia Bessa  (texto)
Teresa Maia  (foto)

Ela fechou os olhos e tirou cada peça de roupa em câmera lenta. Um aparato burocrático a aguardava. Dela esperavam que agisse com naturalidade. Difícil, quase impossível. A brutalidade do abuso sofrido estava ali no corpo que tremia de raiva, na dor silenciosa que latejava no pensamento, na lembrança do homem desconhecido que a obrigou a fazer sexo quando voltava do trabalho bem ali no bairro onde foi menina. Simone, uma mulher de 32 anos moradora da Zona Norte do Recife, estava no Instituto Médico Legal (IML) buscando indícios do pesadelo que viveu. Já havia passado pelo hospital. Para pedir punição contra o abusador, precisava calar diante da burocracia. Mas, se não tinha alternativa, assim seria – desde que fosse em nome da punição do agressor. Simone enfrentou. “Não queira nem ouvir muitos detalhes de como foi. Você sofreria também”, disse-me.
Mês passado, li com pesar as entrelinhas de uma matéria. A reportagem narrava o estupro coletivo de uma mulher e quatro adolescentes que participavam de um retiro espiritual da Comunidade Católica Ressurreição, numa chácara situada na zona rural do município de Bezerros, Agreste pernambucano. Uma frase informava como seria o trâmite para iniciar as investigações dos agressores: “a mulher e as quatro adolescentes foram encaminhadas ao Instituto de Medicina Legal de Caruaru”. Era algo aparentemente corriqueiro. O quanto de sentimentos, de angústia pode-se ver por trás dessa frase, desse procedimento…
A boa notícia – ou, senão boa, pelo menos alentadora – é que, ao que tudo indica, mulheres vítimas de violência sexual tendem a partir de agora a ter um tratamento mais humanizado. Ontem uma portaria assinada por vários ministros aponta para esse cenário. Segundo o documento, a coleta de provas de violência sexual poderá ser feita em serviços públicos de saúde credenciados ligados ao Sistema Único de Saúde.
Assim, as mulheres agredidas por desconhecidos, parentes ou amigos, não precisam mais depender exclusivamente do IML e nem ficarão submetidas a dois exames (o médico e o do IML) para atestar o abuso porque a atribuição da prova deixou de ser exclusiva da segurança pública. A coleta da unidade médica seguirá das unidades de saúde para o IML e pode servir como prova. A portaria pode gerar dois impactos: um, psicológico, porque promete a humanização do atendimento às vítimas e a redução de danos psicológicos. Outro, de ordem processual, porque, se os vestígios do crime forem colhidos nas primeiras horas após a violência, a tendência é de que haja uma coleta mais eficiente. “O exame do IML coloca a vítima novamente em condição de vítima. Ou seja, há uma revitimização”, explica a psicóloga Hyldiane Lima, do Centro de Mulheres do Cabo, profissional experiente no apoio a mulheres agredidas física, sexual e moralmente. Concluo que, reduzindo-se a revitimização, veremos uma melhoria no atendimento.
Ontem a delegada responsável pelo Departamento da Mulher, Cláudia Freitas, me informou que encaminhará a portaria para todos os responsáveis pelas dez delegacias especializadas. Em seguida, enviará para a diretoria de Polícia para que a notícia seja replicada para todos os delegados e, assim, implementada.
Sei que daqui até a disponibilização desse ambiente mais humanizado para as “Simones” e outras tantas vítimas ainda tem muita estrada. Acho que o principal desafio é a preparação dos profissionais de saúde para o atendimento apropriado a essa mulher que chega lesionada, agredida, traumatizada. Serão muitos treinamentos, uma grande mudança de cultura interna em hospitais e clínicas para que a prova seja colhida e enviada para a autoridade policial. Mas sou espécie de Poliana neste assunto. Acho que foi dado o primeiro passo com a assinatura da portaria interministerial. Cabe à imprensa e à sociedade, organizada e não organizada, cobrar prazos, procedimentos e direitos para que a humanização aconteça na prática.