calçadas

Ivan Melo/Esp.DP/D.A.Press

Calçada sem conservação é um grave desrespeito à cidadania. É preciso dar o primeiro passo para acabar com o reino das topadas. Texto escrito no dia 13 de janeiro para um Em Foco do Diario. Como não saiu no papel, ganha vida no online. Nestes três meses, a situação nada mudou…

O direito de andar

Paulo Goethe  (texto)

Proponho um novo indicador para medir o nível de civilidade, desenvolvimento e bem-estar de uma cidade: o número de topadas por habitante nos passeios públicos. O Recife seria um dos campeões deste ranking negativo, porque moradores e turistas sabem como é difícil caminhar na maioria dos cinco mil quilômetros lineares de calçadas das 13 mil ruas da capital pernambucana. Os obstáculos são os mais diversos: buracos, esgoto estourado, raízes de árvores, correntes, pinos de ferro, desníveis, cerâmicas deslizantes, fiteiros, carros invasores. Cada imóvel tem uma maneira de se comunicar com a rua e a largura de 1,2 metro a 2,5 metros destinada aos caminhantes não apresenta o mesmo cuidado dado à fachada e ao interior das propriedades.

De acordo com a lei municipal  16.890/2003, a responsabilidade pela manutenção do passeio no Recife é do proprietário ou dos condôminos. O mesmo princípio da legislação aplicada em Nova York, que deixa claro na sua longa regulamentação que as calçadas não devem ficar em condições que possam provocar qualquer tipo de ferimento aos transeuntes, “inclusive morte”. Quem já viajou para a cidade norte-americana sabe que o malabarismo maior é driblar as pessoas com suas compras e não as armadilhas do chão.

Por que outros lugares conseguem uma padronização das calçadas e nós continuamos optando pelo transporte motorizado mesmo para distâncias curtas? A resposta mais imediata seria a falta de fiscalização. Mas é preciso também tornar a lei mais técnica, especificando melhor as punições e aplicando-as de forma a garantir que os reparos sejam feitos de forma rápida.
Em 2013, o arquiteto Francisco Carneiro da Cunha e o engenheiro Luiz Helvécio lançaram Calçada: o primeiro degrau da cidadania urbana, um pequeno livro de 64 páginas onde defendem a importância dos passeios para a mobilidade urbana e sugerem boas práticas adotadas em outros países da América do Sul.

Caminhantes inveterados, os autores professam os mesmos ideais defendidos pelo poeta e naturalista norte-americano Henry David Thoreau, que em 1860 publicou o ensaio Andar a pé, onde  expressa a sua convicção de que usar as pernas muda a forma de ver o mundo. “Mas o andar de que falo eu nada tem que ver com exercício, nem a isso se destina. Não é como o remédio que os doentes tomam a determinadas horas, nem como os halteres para o desenvolvimento muscular. É antes o motivo e a aventura do dia”, ensinava.

A aventura de Thoreau, de desbravar bosques e campinas, pode ser substituída no nosso tempo pela redescoberta da paisagem urbana: uma casa diferente, uma loja não percebida antes, uma rua que abriga um restaurante novo… Flanamos quando em viagem, por que não podemos ter este mesmo prazer em nossa própria cidade?

Sei muito bem que podem argumentar que o Recife tem um sol de rachar e que, na temporada chuvosa, tudo fica alagado. Por isso, não seria uma cidade ideal para pedestres. Mas um terço da população recifense, principalmente por razões econômicas, já se desloca a pé de casa para a escola ou para o trabalho. Nestes tempos de passagem de ônibus mais cara e da moda das bicicletas, é preciso colocar mais gente nas calçadas devidamente arborizadas, niveladas e sem obstáculos. A população nas ruas é um antídoto barato até para a violência. Para isso, é preciso dar o primeiro passo.