IPM/Reprodução da Internet

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Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio falecido aos 74 anos de idade, tinha um coração do tamanho do continente americano. A trilogia Memória do Fogo integra a categoria de livros-espelhos, aqueles que servem para revelar o que somos. Os três textos abaixo integram o primeiro volume, um calhamaço de 334 páginas repletas de pequenos relatos desde as lendas dos donos desta terra antes da chegada de Colombo até o início do século 18. É a história dos vencidos a partir dos documentos deixados pelos vencedores. A origem do amor, narrada pelos cashinauas, supera em lirismo muito de tudo o que a literatura ocidental versou sobre o tema. Mesmo não ficando pedra sobre pedra, a alma permanece intacta. Palavras são imortais. De todos os fogos, o fogo.

 

O AMOR

Na selva amazônica, a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as
pernas.

– Te cortaram? – perguntou o homem.

– Não – disse ela. – Sempre foi assim.

Ele examinou de perto. Coçou a cabeça. Ali havia uma chaga aberta. Disse:

– Não comas mandioca, nem bananas, e nenhuma fruta que se abra ao amadurecer. Eu te curarei. Deita na rede e descansa.

Ela obedeceu. Com paciência bebeu os mingaus de ervas e se deixou aplicar as pomadas e os unguentos. Tinha de apertar os dentes para não rir, quando ele dizia:

– Não te preocupes.

Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver em jejum, estendida em uma rede. A memória das frutas enchia a sua boca de água.

Uma tarde, o homem chegou correndo através da floresta. Dava gritos de euforia e gritava:

– Encontrei! Encontrei!

Acabava de ver o macaco curando a macaca na copa de uma árvore.

– É assim – disse o homem, aproximando-se da mulher.

Quando acabou o longo abraço, um aroma espesso, de flores e frutas, invadiu o ar. Dos corpos, que jaziam juntos, se desprendiam vapores e fulgores jamais vistos, e era tanta a formosura que os sóis e os deuses morriam de vergonha.
(baseada numa lenda cashinaua)

 

AS PERGUNTAS DO CACIQUE
Entrega comida e ouro e aceita o batismo. Mas pede que Gil González de Ávila explique como Jesus pode ser homem e deus, e Maria virgem e mãe. Pergunta aonde vão as almas quando saem dos corpos e se está a salvo da morte o Santo Padre de Roma.
Pergunta quem escolheu o rei de Castilha. O cacique Nicarágua foi eleito pelos anciões das comunidades, reunidos ao pé de uma ceiba. Foi o rei eleito pelos anciões de suas comunidades?

Também pede o cacique que o conquistador lhe diga para que tão poucos homens querem tanto ouro. Terão corpos suficientes para tantos adornos?

Depois pergunta se é verdade, como anunciou um profeta, que perderão sua luz o sol, as estrelas e a lua, e se o céu cairá.

O cacique Nicarágua não pergunta por que não nascerão crianças nestas comarcas. Nenhum profeta lhe contou que daqui a poucos anos as mulheres se negarão a parir escravos.
(Cuauhcapolca, 1523)

 

O EXTIRPADOR DE IDOLATRIAS

A golpes de picareta estão quebrando Cápac Huanca. O sacerdote Francisco de Ávila grita com seus índios para que se apressem. Ainda restam muitos ídolos para serem descobertos e triturados nestas terras do Peru, onde ele não conhece ninguém que incorra no pecado da idolatria. Jamais descansa a cólera divina. Ávila, açoite dos feiticeiros, vive sem sentar-se. Mas para seus servos, que sabem, cada golpe dói. Esta pedra grande é um homem escolhido e salvo pelo deus Pariacaca.

Cápac Huanca foi o único que partilhou com ele sua chicha de milho e suas folhas de coca, quando Pariacaca se disfarçou com trapos e veio a Yarutini e aqui suplicou que lhe dessem de beber e mascar. Esta grande pedra é um homem generoso.

Cápac Huanca foi esfriado e convertido em pedra, para que não fosse levado pelo furacão de castigo que levou, em um sopro, todos os outros.

Ávila faz com que joguem seus pedaços em um abismo. Em seu lugar, finca uma cruz.

Depois pergunta aos índios a história de Cápac Huanca e a escreve.
(Yarutini, 1611)

 

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