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O Recife é uma cidade cruel, “amiga dos que a maltratam, / inimiga dos que não”.  O poeta Carlos Pena Filho, cuja trágica morte, quando tinha 31 anos de idade, vai completar 55 anos em junho, sabia bem desta característica da capital pernambucana. Afinal de contas, amou como nunca a terra onde nasceu. No dia 12 de abril de 1970, o Diario de Pernambuco publicou uma página inteira relembrando a primeira década sem a presença do autor, destacando a publicação de sua obra em um único volume, o Livro Geral, enriquecido com nota bibliográfica de Ariano Suassuna. Com texto de Tadeu Rocha e fotos de Diógenes Montenegro, a intenção era convidar o leitor para um passeio pela cidade, por suas pontes, praias e subúrbios, a partir da criação da pena de Pena. Uma viagem que pode ser retomada agora.

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Fragmentos poéticos da “cidade cruel” segundo Carlos Pena

Notas de Tadeu Rocha
Fotos de Diógenes Montenegro

ONDE O MAR SE EXTINGUE

Recifense de nascimento e formação, Carlos Pena Filho inscreve-se entre os grandes poetas que que têm como polos de sua visão universalista a região e o espírito. Com os pés na terra, ele soube cantar as coisas do Nordeste, a partir de sua cidade, cuja base geográfica e evolução histórica sintetizou maravilhosamente nos versos do Guia prático da cidade do Recife – “metade roubada ao mar, / metade à imaginação, / pois é do sonho dos homens / que a cidade se inventa”.
Estes quatro versos resumem os quatro séculos de história do Recife, que ninguém sabe exatamente quando nasceu, mas todos imaginam ter surgido, espontânea, no dia em que um dos “galegos” de Duarte Coelho desceu de um monte de Olinda e veio morar “no ponto onde o mar se extingue / e as areias se levantam”. Foi bem ali, na antiga península do Recife, que então “cavaram seus alicerces / na surda sombra da terra / e levantaram seus muros / do frio sono das pedras”.

O RIO E AS PONTES

O Capibaribe não poderia ficar ausente do Guia poético de Carlos Pena Filho, nem poderia ali aparecer desligado de “Manuel, João e Joaquim”: Manuel Bandeira, o da Evocação do Recife; João Cabral de Melo Neto, cantor de O Cão sem plumas; e Joaquim Cardozo, que ouviu o rio “murmurando como um velho órgão”, e nele descobriu “uma catedral imersa, imensa, deslumbrante, encantada”, onde “as almas dos heróis antigos vão rezar”. Carlos Pena Filho lembrou os três poetas e seu rio, “escorregando nos montes, / até este sítio claro, / onde cobriram seu leito / de pedra, ferro e cimento / organizados em pontes”.

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OS SUBÚRBIOS

Subindo os vales do Beberibe, do Capibaribe, do Jiquiá e do Tejipió, nasceram os mais antigos engenhos de açúcar pernambucanos, que depois ficaram de fogo morto e deram origem a povoações nos quadrantes norte, oeste e sul do núcleo portuário e mercantil do Recife. No século 19, com o aparecimento e a evolução dos transportes coletivos – ônibus puxados por animais, bondes de burros e pequenos trens (maxambombas) – essas povoações foram ligadas ao centro urbano e transformaram-se em arrabaldes recifenses, em cujos morros se refugiaram, já no século 20, as levas de famílias operárias, trazidas pelo trem de Liomeiro, pelo trem da serra e pelo trem de Alagoas.
A tragédia social dessa migração desordenada e dessa ainda mais desordenada fixação proletária nos morros periféricos da cidade foi sintetizada nestes versos de Carlos Pena: “Nos subúrbios coloridos / em que a cidade se estende, / em seus longos arredores, / onde a cada instante nasce / uma rosa de papel, / caminham as tecelãs. / Restos de amor nos cabelos / que ocultam por ocultar, / levam a noite no ventre / e a madrugada no olhar / e  em esqueletos da sombra, / onde a luz chega filtrada, / as tecelãs vão parar. / Adeus lembrança de amores, / adeus leve caminhar”.

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AS PRAIAS
Com as obras do porto desta capital iniciadas em 1909, desapareceu a única praia frequentada neste município – a do Brum. Somente na década de 1920 foi que o governador Sérgio Loreto e o prefeito Antonio de Góis deram novas praias ao Recife, construindo uma avenida de cinco quilômetros de extensão, desde a antiga ilha do Pina até a povoação de Boa Viagem. Essa história está assim contada por Carlos Pena. “Mas não é só junto ao rio / que o Recife está plantado, / hoje a cidade se estende / por sítios nunca pensados, / dos subúrbios coloridos / aos horizontes molhados. / Horizontes onde habitam / homens de pouco falar / noturnos como convém / à fúria grave do mar”.

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AS IGREJAS
Como com nordestino e filho de português, o recifense Carlos Pena era católico e “não admitia, sem protesto, que se atacasse Deus ou um Santo da Igreja”, ao que depões Ariano Suassuna, no Livro Geral. O grande poeta dedicou, assim, uma parte do Guia Prático aos nossos templos: “Mas não é só, o Recife / ainda tem muitas igrejas / lavando os pecados seus”. Delas, primeiro, ele cantou a de São Francisco, “na Rua do Imperador, / com rezas pra Santo Antonio / e promessas por amor”. Depois chorou o destino da igreja de São Pedro dos Clérigos, então “sozinha, em seu abandono”. E afinal escreveu: “Tem lá perto do mar, / plantada em meio do mal, / a sua concatedral / chamada Madre de Deus”.

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CIDADE CRUEL
Em perto de quatro séculos de poesia, esta cidade está mimada ou ofendida com as mais diversas designações. Povoação mestiça, chamou-lhe Gregório de Matos, Veneza Americana, apelidou-a Gonçalves Dias. Cidade valente, escreveu Tobias Barreto. Ribeiro Couto a viu como cidade-menina e Palo Tôrres qual cidade-mulher. Cesar Leal descobriu neste burgo um soberbo perfil de touro e Ariano Suassuna aqui percebeu a porta azul dos engenhos e do mar, porta de ouro e castanho do sertão. Rodolfo Maria de Rangel Moreira cantou o Recife escuso e desconhecido, Jaci Bezerra encontrou-o em ruínas – Veneza incendiada. Então, Joaquim Cardozo chorou o Recife morto, pregado à cruz das novas avenidas.
Carlos Pena Filho, glosando a explosão impulsiva de Agamenon Magalhães ao perder uma eleição nesta cidade – “Cidade cruel!” – enriqueceu o Guia poético desta capital com estes intensos versos: “Recife, cruel cidade. / águia sangrenta, leão. / Ingrata para os da terra, boa amiga para os que não são. / Amiga dos que a maltratam, / inimiga dos que não”.