Em Foco 2304

Ex-interna da Funase por envolvimento com tráfico de drogas, negra, lésbica e pobre, Beatriz Silva de Oliveira, 20 anos de idade, agora trabalha na Prefeitura do Recife. Como MC Nino, canta a sua vida e de outros que não tiveram uma segunda chance. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta quinta-feira, por Marcionila Teixeira. A foto que ilustra a página é de Brenda Alcântara.

A surpreendente história de Bia

Marcionila Teixeira  (texto)
Brenda Alcântara  (foto)

Bia dá uma última checada no visual. Veste calça jeans e camisa masculinas. Nos pés, um par de tênis. No pescoço, um trancelim. Olha para a câmera e, tímida, solta a voz. Reafirma a própria história ao cantar um rap autoral. Gesticula para redundar as palavras. Quem sabe, fazê-las chegar mais poderosas aos ouvidos distraídos. A letra fala da violência vivida na pele, dos conselhos da mãe, de esperança.
Quando canta, Beatriz Silva de Oliveira é o MC Nino, um jovem de 20 anos nascido e criado nos becos da Favela Entra a Pulso, na Zona Sul do Recife. Negra, lésbica, pobre, ex-interna da Funase. Sobrevivente de um estupro que lhe enche os olhos de lágrimas ao simples tocar no assunto. Mãe de Jéssica, de um ano e meio. Filha de toda sorte de exclusão social.
Bia também já foi Bia da 12 nos corredores da polícia. Ganhou o apelido porque comandava o tráfico de drogas de posse de uma espingarda de tal calibre. Na época, tinha apenas 14 anos, mas era temida até mesmo nas comunidades rivais.
No mercado lucrativo do tráfico, colocava as mãos diariamente em uma soma de cerca de R$ 1,5 mil. Ficava com menos da metade. O restante era do dono da droga. Gastava em festas, adereços e roupas de adolescentes. “Chegava em casa e minha mãe estava bêbada e drogada. Meu irmão menor dizia que tinha fome. Procurava comida no armário e encontrava tudo vazio. Não aguentava mais aquilo. Não ia deixar meu irmão com fome”, conta, justificando sua adesão ao tráfico no início da adolescência.
A primeira entrada na Funase aconteceu aos 15 anos. Até completar 18, passou por quatro unidades da instituição, uma delas em Petrolina, no Sertão. Na última estadia, Bia já não era mais a mesma jovem que costumava se envolver em brigas com outras internas. “Descobri que meu destino era ficar presa ou morrer. Aprendi que preciso valorizar as pessoas que estão do nosso lado na hora que a gente mais precisa. Aprendi a pedir desculpas quando alguém pisa no nosso pé no lugar de partir para a briga, como diziam as ‘tias’ da Funase. O crime e a droga não me dominam mais”, reflete.
Pela primeira vez, Bia conquistou férias. Foi no último mês de março. Partiu com a mãe e a namorada para Fernando de Noronha. “Foi incrível lá. Viajei com o dinheiro de um trabalho digno pela primeira vez na vida”, diz, com um brilho nos olhos. Há um ano e quatro meses está na Prefeitura do Recife. Foi empregada através do Trampolim, um programa da Secretaria de Segurança Urbana destinado a capacitar e encaminhar para o mercado de trabalho egressos da Funase e dos programas em meio aberto, como Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade.
Ao todo, 148 pessoas se formaram no Trampolim no ano passado. Destas, 120 foram encaminhadas para empregos e 33 permanecem nos cargos, assim como Bia. O programa somente é considerado concluído pela equipe da secretaria com o encaminhamento de todos para as vagas, nem sempre disponíveis para quem passou pela Funase.
A história de superação de Bia representa um sopro de esperança diante do pavor da violência que toma as ruas e da grita pela redução da maioridade penal, em discussão atualíssima depois da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública, pessoas entre 16 e 18 anos são responsáveis por menos de 0,9% dos crimes praticados no país. Bia era parte desse percentual de “infratores irrecuperáveis”, como acreditam alguns. Hoje ela nos faz pensar sobre os caminhos surpreendentes que vidas violentas e violentadas pela exclusão social podem ganhar.