Em Foco 2404

Livros continuam desafiando a surrada hipótese de que estão com dias contados e se mostram paixão nacional em vários países. Tema do Em Foco desta sexta-feira do Diario de Pernambuco, por Luce Pereira. A imagem que ilustra a página foi criada por Greg.

Uma janela para o mundo

Luce Pereira  (texto)
Greg/dp  (arte)

Olho sempre com muito respeito para quem encontro lendo um livro. A pessoa realmente aparenta certo ar de distinção, talvez porque o cubo tridimensional de papel, que parece fazer o mundo à volta sumir, enquanto é folheado, funcione como o mais reluzente cartão de visita. Indica que o leitor faz parte daquela seleta parcela de habitantes com acesso ao mundo da informação e do conhecimento e está sendo permanentemente beneficiado pelo poder transformador dos conteúdos. Na pior das hipóteses, ler melhora a escrita, o senso crítico e eleva o nível de argumentação, revelando-se, assim, hábito indispensável na construção do país que o Brasil sonha ser.
Mas, ontem, em mais uma passagem do Dia Nacional do Livro, lembremos que nem as obras do autor que inspirou a data, Monteiro Lobato, conseguem atravessar o tempo sem o risco de perder para rivais poderosos como as crias do mundo digital. O Brasil pode estar lendo mais, como asseguram institutos encarregados de aferir estas mudanças, mas ainda encontra-se a distância considerável de vizinhos como a Argentina. Lá, independentemente da tese de que cidades como Buenos Aires têm número infinitamente maior de livrarias do que São Paulo, por exemplo, a paixão pelos livros é cristalina.
Programa imperdível no fim de semana portenho, a feira de antiguidades de Santelmo pode servir para ilustrar bem essa paixão. Muitas vezes fui obrigada a aumentar a voz para chamar a atenção do vendedor de uma barraca acerca do meu interesse por algum produto, pois lá estava ele (ou ela) completamente absorvido pela leitura, alheio ao vaivém de pedestres. Possivelmente, até, nem se desse conta da ocorrência de algum furto, tal o interesse pela leitura.
Aliás, nos países desenvolvidos do planeta, ônibus, metrôs, parques e os lugares mais inusitados são testemunhas do apreço dos habitantes pelos livros, não importa o formato, se digital ou tradicional. Simplesmente lê-se muito, colocando por terra a desconfiança de que uma das maiores invenções da humanidade está fadada a desaparecer, fragilizada pelo consumo excessivo de tecnologia. “Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever – inclusive a sua própria história”, quem diz é Bill Gates, o fundador da gigante Microsoft, para não deixar dúvidas: livros são eternos, porque sem eles é como se o mundo perdesse a capacidade de traduzir o passado ou futuro.
Lamentavelmente, o Brasil – embora em nível de discurso enfatize o esforço para atingir uma educação de estatura razoável – segue sem políticas sistemáticas e consistentes de incentivo à ampliação do universo de leitores do futuro. Eles deveriam estar se deliciando com visitas à obra de gênios como Monteiro Lobato, que será sempre indispensável, mas o resgate dos grandes autores nacionais, por exemplo, parece sempre esbarrar na impossibilidade de releitura da própria escola, ainda vitimizada pelas velhas deficiências e equívocos.
É necessário, portanto, reinventar o prazer pela leitura, que pode não ser o único caminho para livrar o país de uma dívida histórica com o desenvolvimento, mas é o mais convincente e urgente. Segundo o filósofo Cícero (Marcus Tullius), poucas coisas são mais gratificantes: “Se ao lado da biblioteca houver um jardim, nada faltará”, disse, resumindo o que considerava uma combinação perfeita. Para nós, a biblioteca já estaria de bom tamanho.