Não dá para sair incólume da leitura de Vida e destino, do jornalista e escritor Vassili Grossman. São 920 páginas – isso mesmo, 920 – que retratam o horror da segunda guerra mundial do lado dos soviéticos com o peso literário de um gênio. Grossman, judeu nascido na Ucrânia, sabia bem do que escrevia. Foi testemunha mais do que ocular desta história toda – chegou a passar mais de mil dias no front, no campo de batalha e não nos seguros postos de controle, convivendo com o cheiro da morte, uma “mistura de sangue e serragem”. Acompanhou de perto a vitória russa em Stalingrado e foi um dos primeiros representantes da imprensa a ver os horrores de um campo de concentração. Seu texto sobre Treblinka foi apresentado como prova de acusação no julgamento dos nazistas em Nuremberg.
Mesmo com todos estes méritos no currículo, o redator do jornal Estrela Vermelha, do exército soviético, não saiu incólume no pós-guerra no regime stalinista. Seu manuscrito de Vida e destino, escrito no final dos anos 1950, foi apreendido pela KGB. O material era explosivo demais para ser publicado. A descrição dos efeitos do totalitarismo, dos campos de trabalho forçado ao medo de ser delatado pela própria família, não apresentava um quadro positivo do poder stalinista. Grossman morreu em 1964. Somente dez anos depois sua obra-prima conseguiu ser editada na França, depois que uma cópia datilografada foi microfilmada e “contrabandeada” dentro de um carteira de cigarros.
A versão brasileira, traduzida diretamente do russo por Irineu Franco Perpetuo, é considerada a definitiva porque trata-se de uma cópia encontrada nos arquivos da KGB em 1989, com correções do próprio punho de Grossman. Vida e destino tem uma profusão de personagens e cada capítulo pode ser encarado como uma história particular. O poder de observação do jornalista durante a guerra serviu para dar veracidade às cenas. Difícil não se emocionar em episódios como a carta que a mãe do físico Víktor Strum, um dos personagens mais importantes e alter-ego do escritor, narra para o filho sabendo que vai ser morta em um gueto numa cidade ucraniana. Ou seguir os passos até a câmara de gás da médica Sófia Ossipovna ao lado de David, um menino de cinco anos que ela “adota” no trem da deportação. A morte torna-se um parto ao contrário.
Para Grossman, nazismo e stalinismo são as duas faces de uma mesma moeda. Não há heróis na guerra, apenas os que conseguiram sobreviver e fazem de tudo para apagar como conseguiram isto.
Em 2008, a editora Objetiva lançou Um escritor na guerra — Vassili Grossman com o Exército Vermelho, 1941-1945, com material baseado nos cadernos de anotações que ele levou para o front. O historiador britânico Antony Beevor foi o responsável pela edição final de 496 páginas. É um excelente complemento para Vida e destino, uma prova de que o jornalismo e a literatura podem ficar na mesma fronteira.