Escrever obituário é uma arte jornalística pouco praticada nestas terras. Tradição anglo-saxônica, narrar em textos curtos as biografias de famosos e, principalmente, anônimos, não é tarefa fácil. No Brasil, poucos jornais reservam espaço no papel para eternizar em palavras os feitos geralmente conhecidos por amigos e familiares. Uma exceção é a Folha de São Paulo. De 2.688 textos publicados na seção “Mortes”, desde 2007, 150 foram escolhidos pelo jornalista Leão Serva para integrar o livro Um dia, uma vida, lançado em fevereiro pela estreante editora Três Estrelas, selo da Publifolha. Em 216 páginas, conhecemos tanto histórias de colegas de imprensa como Geraldo Galvão Ferraz e Rodolfo Konder quanto de personagens como o primeiro patrão de Lula e o médico que tratou da perna de Roberto Carlos. Abaixo, o texto de apresentação por Antonio Prata, escritor e colunista da Folha e autor de, entre outros, Nu, de botas (Companhia das Letras, 2013).
Uma coletânea de obituários é dos poucos livros cujo desfecho se pode contar, logo na orelha, sem arruinar a leitura: nas 150 histórias aqui reunidas, o protagonista morre no final.
Pode-se contar o fim não apenas porque ele já é sabido – infelizmente, deixar a vida é a única forma de entrar na seção diária do caderno “Cotidiano”, da Folha de S.Paulo –, mas sobretudo porque as últimas linhas desses perfis não são as mais importantes.
A morte é a moldura que, de uma hora pra outra, transforma o que parecia um esboço numa obra terminada. Mas o clímax das histórias vem antes – daí o título, tão acertado, Um dia, uma vida.
Viramos as páginas desse livro como quem folheia álbuns de fotografia de desconhecidos, espiando, curiosos, o que cada pessoa fez com o tempo que lhe coube. Uma vai de São Paulo até o Alasca de moto. Outra passa a vida anotando dados sobre a seleção brasileira.
O taxista se apaixona pela passageira. O manobrista casa com a moça que lhe pediu o guarda-chuva. Um garoto perde a balsa e escapa da bomba atômica.
Mais do que os acontecimentos extraordinários na vida de alguns, o que comove são os pequenos prazeres, traços e manias que, iluminados pelo aziago ponto final, se revelam com inesperada pungência.
Para além da tristeza incontornável do gênero, o que sobra da leitura desses obituários é a beleza escondida em frases aparentemente banais: “Montou um clube de filatelia e uma grande exposição de selos”; “Como ‘bom gaúcho’, divertia‑se escolhendo temperos para carnes”; “Gostava de ver o mar e teve um veleiro”.
É a vida que o tempo todo passa diante do nosso nariz, despercebida, o que paramos
para contemplar nessas 150 molduras.
Um dia, uma vida pode ficar na sua prateleira ao lado de O livro das vidas – Obituários do New York Times, lançado em 2008 no Brasil pela Companhia das Letras, dentro da coleção Jornalismo Literário. Em 312 páginas, temos acessos tanto a perfis de quem escrevia para a seção como de pessoas que gostaríamos de ter conhecido, mesmo que apenas de passagem. No primeiro bloco está Alden Whitman, retratado por Gay Talese no livro Fama & anonimato como o Sr. Má Notícia. Como lembra o jornalista Matinas Suzuki, apresentador do livro, Alden entrevistava personalidades avisadas de que dariam informações para os seus próprios obituários. Outro personagem de destaque é Robert McG. Thomas Jr., que escreveu 657 textos para a seção do NYT e depois de morrer, aos 60 anos, em 2000, virou o próprio personagem, em texto publicado na coletânea. Abaixo, um exemplo do estilo dele, que era famoso por conseguir descrever em uma frase toda a vida de uma pessoa.
Russell Colley: O Calvin Klein do espaço
Por Robert McG. Thomas Jr.
Russell Colley, estilista frustrado de moda feminina que aproveitou sua carreira alternativa de engenheiro mecânico para se tornar o Calvin Klein da roupa espacial, morreu na Ohio Masonic Home em Springfield, Ohio. Estava com 97 anos, e foi conhecido por toda uma geração de astronautas como o pai dos trajes espaciais.
Na década de 50, quando os Estados Unidos começaram a se dedicar ao vôo espacial tripulado, já fazia tempo que Colley, engenheiro por muitos anos na B. F. Goodrich Company em Akron, Ohio, ajudava a equipar pilotos de grande altitude. Na verdade, ele tinha recebido a alcunha de “pai dos trajes espaciais” na década de 30, quando trabalhou com Wiley Post, o visionário aviador mambembe, desenhando o traje pressurizado de marciano que Post usou para estabelecer seus recordes de altitude. Durante a Segunda Guerra Mundial, Post adaptou esse uniforme para pilotos da Marinha, e depois o novo modelo serviu de base para o traje dos astronautas do Programa Mercury.
Colley, cujas realizações em engenharia foram muito além da moda espacial, obteve cerca de 65 patentes durante a sua carreira de 34 anos na Goodrich, entre elas a do degelador inflável usado ainda hoje para remover gelo das asas de aviões, e a patente do Rivnut, dispositivo que permite que apenas uma pessoa fixe os rebites na asa de aviões, coisa que seria impossível com os métodos tradicionais, que exigem a presença de um operário adicional na outra ponta do material rebitado.
Nascido em Stoneham, Massachusetts, onde o pai administrava uma farmácia, Colley tinha inclinações para as artes e para a mecânica; porém, apesar de todos os modelos de aviões que montou na infância, foi somente no colegial que descobriu o que queria fazer na vida. Mas, quando anunciou que seu sonho era ser estilista de moda feminina, o professor ficou tão espantado com a idéia de um garoto desejar uma carreira dessas que Colley teve sorte de não haver um psicólogo escolar para o qual encaminhá-lo. Em vez disso, ele foi rapidamente despachado para um curso de desenho mecânico, onde descobriu o prazer de bolar soluções criativas para problemas difíceis, o que se tornou sua especialidade na Goodrich.
Colley, que estudou no Wentworth Institute of Mechanical Engineering em Massachusetts, teve vários empregos em Ohio antes de entrar na Goodrich, em 1928.
Quatro anos depois, ele inventou o degelador. O piloto que iria testá-lo estava tão reticente que achou por bem que o inventor também arriscasse a vida durante o primeiro voo experimental, uma viagem de Cleveland a Buffalo durante uma forte tempestade de inverno. Colley concordou, mesmo tendo de se instalar em cima de um caixote de laranjas no abarrotado compartimento de correio do biplano Martin, que só carregava um tripulante. “Era um dia em que até os patos estavam andando”, recordou-se
Colley. “Ninguém mais seria tão idiota de voar.” Mas os degela- dores funcionaram perfeitamente, e o piloto e o inventor atravessaram a tempestade em segurança.
Dois anos depois, em 1934, Colley foi designado por Post para criar uma roupa pressurizada de borracha que lhe permitisse voar acima de 40 mil pés, onde a pressão atmosférica é tão baixa que um aviador sem proteção simplesmente explodiria. Trajes pressurizados já eram usados por alpinistas desde o começo dos anos 1900, e tinham virado marca registrada da ficção científica, mas Colley estava pisando em terreno novo ao desenvolver uma roupa capaz de proteger o piloto durante períodos longos de voo em grande altitude.
Depois de muitas tentativas malogradas, ele chegou a um desenho que devia tanto à ficção científica que, quando Post foi obrigado certa vez a fazer um pouso de emergência, a primeira pessoa que encontrou depois de se afastar do avião acidentado quase desmaiou de medo, achando que aquela criatura com um capacete que parecia um escafandro de alumínio só podia ter vindo de Marte. A aparição deve ter sido especialmente assustadora, pois o capacete feito sob medida tinha um visor descentralizado, adaptado ao olho bom de Post, que era caolho.
Como estilista espacial, Colley era perito em botar a mão na massa. Ele confeccionou em casa uma parte do traje de voo de Post, usando a máquina de costura de sua esposa, Dorothy, enquanto o piloto passava o tempo ensinando Barbara, a filha de dez anos dos Colley, a jogar dados – tão bem que, quando ele foi embora, ela lembra que o piloto deixou um vale “de 50 mil” assinado, sem especificar o que seriam os tais 50 mil.
Um ano depois, antes do seu último e fatal voo, ela conta que Post telefonou e falou que planejava pagar em beijos.
Com o desenvolvimento das cabines pressurizadas, os trajes pressurizados tornaram-se desnecessários, até que o programa espacial criou uma nova demanda. Então Colley voltou a campo para enfrentar – com sua habilidade de sempre – uma série de complicados problemas tecnológicos, entre eles um de flexibilidade, que resolveu observando o movimento de uma larva de tomate.
Tal como os famosos projetistas do estádio Yale Bowl, que de tão entusiasmados com sua façanha de engenharia somente notaram a falta de banheiros quando 70 mil espectadores apareceram para o primeiro jogo, Colley e seus colegas cometeram um lapso famoso, para grande embaraço do astronauta Alan
Shepard, que teve de passar tanto tempo testando um traje até que – bom, depois disso os outros modelos passaram a incluir certas facilidades.
Colley, que para o primeiro voo orbital de John Glenn desenhou luvas com minúsculas lâmpadas nas pontas dos dedos, recebeu em 1994 a mais alta condecoração da NASA para civis.
Naquela época, ele já tinha se aposentado de longa data, mas uma aposentadoria de quem seguiu construindo os próprios equipamentos de esquiador e arqueiro na oficina do porão, e que passou os últimos anos pintando uma série de aquarelas que lhe valeram o reconhecimento como um dos artistas mais aclamados do nordeste de Ohio.
A esposa de Colley morreu há muitos anos. Ele deixa uma filha, Barbara Fuldine, de Pinehust, Carolina do Norte, dois netos e um bisneto.
8 de fevereiro de 1996