Em Foco 0507

Norte-americano Scott Garner cria aplicativo que evita encontros indesejáveis e fortalece teoria de que estamos tendendo a ficar cada vez mais sós.

Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)

O mundo está ficando muito estranho, a começar pela sensação de que o tempo vem correndo além da conta, como se os relógios estivessem vivendo uma pressa difícil de ser acompanhada pelos mortais. A propósito, da época em que Louis Armstrong gravou What a wonderful world (1967) para cá, muita coisa mudou e não necessariamente para ratificar o que preconizava a canção. A tecnologia está tirando a naturalidade da vida e fazendo da emoção um sentimento cada vez mais desnecessário. Pretende-se, inclusive, tornar tudo previsível, pelo que li na última sexta-feira, de modo que nem a surpresa de esbarrar em alguém conhecido no meio da rua vai mais ser possível, porque já existe um aplicativo criado para evitar encontros indesejáveis – chama-se Hell is other people. Nome sugestivo, pelo jeito, inspirado em uma das frases mais famosas do filósofo francês Jean Paul Sartre – o inferno são os outros.
É verdade que não ter o desprazer de dar de cara com personas non gratas ajuda a melhorar a qualidade do dia de qualquer um, mas o preço por aquietar a adrenalina (nesse sentido) é o aumento da clausura digital a que estamos nos obrigando. Cada vez mais tendendo a evitar interações na vida real, vamos nos tornando bichinhos espertos, autônomos e … Muito isolados. Assim, uma das grandes características da raça humana – a sociabilidade – vai pagando a maior parte da conta. O futuro dirá exatamente o que isto significa.
Alguém consegue imaginar a construção de laços que independam de trocas feitas à base de olho no olho, toques e outras sensações apenas possíveis diante de uma pessoa feita de carne e osso? Nós, que somos crias de uma cultura onde a presença é imprescindível para a afetividade, tememos que o futuro venha a ser um terreno de relações frias e calculadas. Na verdade, a ideia provoca um certo gelo na espinha, porque a realidade transformada em filme de ficção científica pode não ser tão agradável quanto uma sessão de cinema com pipoca onde Arnold Schwarzenegger mostra, aqui e ali, no lugar de veias, fios metálicos.
Aliás, para ilustrar a pequena distância que separa as fronteiras entre o presente e o futuro – além do frio na espinha de que falo –, um exemplo produzido, semana passada, na cidade alemã de Baunatal, onde está uma planta da Volkswagen: um robô da linha de produção de motores elétricos agarrou um trabalhador de 22 anos e o prensou contra uma placa de metal até não restar mais possibilidade de socorro. Muito ferido no peito e alvo de muitas tentativas de reanimação no local do “acidente”, o rapaz acabou morrendo. De quem é a culpa? Isso a polícia quer saber, mas, diferentemente de um filme de ficção, a resposta pode demorar muito para ser encontrada – ou jamais, pois não há, segundo a fábrica, outro registro de robô “assassino”.
Uma realidade absolutamente nova se descortina, mas nada leva a crer que mais emocionante. Mesmo vulneráveis a julgamentos (o que para Sartre representaria o “inferno”) e pouco preparados para enfrentá-los, ainda assim mantemos o grande privilégio de cultivar sentimentos, o que nos torna melhores do que qualquer invenção. E pode ser que a canção de Armstrong fale de um mundo que já não existe, mas resta a capacidade de não esquecê-lo. Quem sabe, até, de reinventá-lo.