Em Foco 2011

Francisco chama de “falso” Natal cheio de luzes, excesso que ignoraria a dimensão da violência e os reflexos dela na vida das pessoas.

Luce Pereira (texto)
Editoria de arte (imagem)

No primeiro e no segundo Natal de Francisco como papa, em 2013/2014, a exuberância da decoração do Vaticano ainda saltava aos olhos. O pinheiro de 25 metros de altura, proveniente de Marktl (Baviera/Alemanha), terra onde nasceu o antecessor, Bento XVI, vestiu-se de luzes, bem como o conjunto de edifícios que cerca a Praça de São Pedro. Em tempos de paz, os europeus se mobilizam tanto para as comemorações que todo o brilho e fartura parecem não bastar como forma de expressão da alegria dos habitantes, àquela altura, absolutamente tocados pelo espírito da festa. As noites, de fato, são especiais e é quase impossível resistir ao clima de fraternidade, no inverno que as cantatas ajudam a aquecer. Este ano, no entanto, a dimensão e os reflexos das guerras na vida do continente encheram de amargura as palavras do pontífice.
Da janela azul de onde se dirige aos fiéis da Praça de São Pedro, o Francisco que celebrava a missa das manhãs de quinta-feira parecia muito angustiado. Insistia em chamar à consciência o rebanho sobre a inadequação entre os costumeiros excessos do profano, na maior data da cristandade, e a dor de um mundo agora sacudido pela violência. “Estamos perto do Natal: haverá luzes, festas, árvores iluminadas, presépios, (…) mas é tudo falso. O mundo continua em guerra, fazendo guerras, não compreendeu o caminho da paz”, disse o papa durante a homilia, em tom de profunda lamentação. Bem distante do otimismo com que costuma analisar a capacidade do homem de, em comunhão com Deus, ser a melhor expressão Dele.
No auge da indisfarçada revolta, Francisco chamou de “malditos e delinquentes” os fomentadores da guerra, entre eles traficantes de armas, que enchem os bolsos de dinheiro enquanto o planeta – em ruínas e tomado pelo ódio – assiste a tantas mortes de inocentes, a milhares de crianças impedidas de ter acesso à educação. Para ele, simplesmente não há argumento que justifique o quadro atual. “Devemos pedir a graça de chorar por este mundo, que não reconhece o caminho para a paz. Para chorar por aqueles que vivem para a guerra e que têm o cinismo de o negar”.
Ouvidos de longe, os adjetivos “maldito”, “delinquente”, “cínico” poderiam dar a impressão de vir de algum representante da gente comum indignado com os níveis desmedidos de exploração e violência que andam transformando o planeta em uma espécie de purgatório gigante. Mas, não. Era um papa que a todo momento desafina do tom contido com o qual a Igreja trata as doenças mais graves e crônicas do mundo – e talvez por isso possa ser confundido, em algum momento, com qualquer ovelha do rebanho à qual ainda reste voz e coragem para se insurgir contra a extrema miséria humana.
O Natal imaginado por Francisco deve ter um brilho tão discreto quanto a capacidade do mundo de se mobilizar contra a exploração sem limites, a ganância e a corrupção, mesmo sendo a soma delas responsável por iluminar a face monstruosa do terror, que suprime do homem seu maior tesouro – a liberdade. Por isso, não estranhe ao ver o mesmo pinheiro, neste ano, vestido apenas com ornamentos feitos por crianças portadoras de câncer, que se encontram sob tratamento em hospitais da Itália. Quem lembrar delas e das milhares ao redor do mundo impedidas de conhecer a paz, que troque o excesso de luzes pelo de reflexão. Assim, ao menos uma vez, o Natal será Natal.