Em Foco 2411
A história do Brasil vista por meio de cartas trocadas entre presos políticos e parentes está no livro que Joana Côrtes lança no Recife.

Silvia Bessa (texto)
Annaclarice Almeida (foto)

Joana tinha 12 anos quando se deu conta que o passado era muito mais duro do que o livro de história da escola descrevia. Mexendo nas gavetas da sua casa, encontrou uma xerox do processo que falava da sua mãe, Ana. Nele, a advogada Mércia Albuquerque contava o dia em que Ana desfilou nua por entre policiais da ditadura cívico-militar brasileira. Aquelas linhas inquietaram Joana. “Anotei na minha agenda, mas nunca cheguei na minha mãe e perguntei: ‘e aí, como foi?’”. Joana leu, guardou os escritos e não deu uma palavra sobre o assunto, entendendo com maturidade que a intimidade do outro (ainda que da mãe) merecia respeito. Ana foi presa, torturada e numa dessas sessões descobriu-se grávida de Eduardo, o seu primeiro filho. Com Eduardo, o irmão, Joana fez descobertas e estabeleceu cumplicidade no silêncio. Igualmente nunca teve vontade de perguntar sobre os horrores dos quais seus pais foram vítimas. “Essa parte eu sempre pulei”, contou-me.
As cartas continuavam em casa, em Aracaju, no destinatário escrito a mão nas correspondências enviadas por João Bosco Rolemberg quando esteve preso pela repressão na Penitenciária Barreto Campelo, na Ilha de Itamaracá. Era (é) o pai dela. Eram 47, 48, 50 cartas. Joana não lembra bem. Em 2009, ano dos 30 anos da anistia, a menina curiosa já formada em jornalismo, buscou o passado. Recobrou as conversas inexistentes, o preenchimento dos vazios. Sentou-se no canto da sala do seu apartamento em São Paulo e leu uma a uma. “Chorei muito e era lendo e mandando cartas para minha mãe em Aracaju”. Lembrou-se dos tantos domingos que, no lugar do parque de diversões, acompanhou os pais em reuniões políticas. Da mãe, que criou por anos sozinha Eduardo, Marquinhos, o segundo filho. Até que concluiu ter nascido “filha da liberdade”, em 1980, quando o pai já tinha saído da prisão, mas que sua geração acreditava ter chegado ao mundo fora da ditadura.
Era uma inverdade com a qual Joana não conseguia conviver – porque a abertura política só se deu a partir de 1985. Teve coragem de enfrentar sua própria resistência e dores pessoais em nome da preservação da memória. “Acho que processei todo o silêncio em pesquisa”, disse-me. Joana conseguiu quebrar as barreiras familiares: naquele ano de 2009, mudou de cidade e de opinião quanto às cartas quando preparava um projeto de mestrado em história social para a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). “Vou guardar?, pensei. Essa história é deles, mas é minha, sua, do Brasil”. Sorte nossa ter Joana se dado conta dessa compreensão.
Joana Côrtes lança hoje, às 19h, na Livraria Cultura no Paço Alfândega, aqui no Recife, o seu livro “Dossiê Itamaracá” (Arquivo Nacional). Um relato precioso sobre o cotidiano de resistência dos presos políticos da Penitenciária Barreto Campelo de 1973 a 1979. Um lugar que seu pai conhece bem e do qual ela sempre ouviu falar por meio de uma única palavra: “a ilha”.
O livro (premiado no Prêmio Memórias Reveladas 2012) traz muito de João Bosco Rolemberg e um tanto das experiências de Alanir Cardoso, Carlos Alberto Soares, Alberto Vinícius Medo do Nascimento, Francisco de Assis Barreto da Rocha Filho e Marcelo Mário de Melo. Todos ex-presos políticos. João Bosco e Ana Maria, militantes da Ação Popular, organização de esquerda que atou na década de 1970, que pertenceram a movimentos estudantis desde seus 19 anos. João Bosco ficou preso entre 1974 a 1979 na Ilha de Itamaracá, na Barreto Campelo. Entre os demais, teve quem ficasse preso até 10 anos, como é o caso de Alberto Vinícius de Melo.
O trabalho de Joana foi desfiar correspondências íntimas entre marido e mulher nos anos de prisão. Despir pais. Foi revelar fotos em preto e branco em três décadas, estampar pirogravuras produzidas na detenção políticas e que nunca vistas pelo público. Narrar diários de greves de fome. Trazer testemunhos de vivências que se completam com entrevistas e pesquisas no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) feitas durante os dois anos em que produziu a dissertação de mestrado.
Dossiê Itamaracá traz passagens e detalhes de episódios dentro e fora da prisão. É único para quem quer entender e falar sobre a democracia brasileira. Tem o olhar de uma pesquisadora. A carga emocional e afetiva forte de uma filha de preso político e a preocupação de uma cidadã quanto à preservação da memória de um país e que não se conforma que a ditadura ocupe apenas uma pequena coluna nos livros didáticos. “Dossiê Itamaracá” é um livro de reencontros. Familiares e históricos.