Em Foco 2211

Cantoras não deixam barato posturas que insistem em colocar mulheres como alvos de abuso, desrespeito ou submissão.

Luce Pereira (texto)
Editoria de Arte (ilustração)

 

Vaias não nasceram para gênios da música brasileira como o mineiro Ary Barroso (1903), o gaúcho Lamartine Babo (1904) e o carioca Noel Rosa (1910), exceto se o auge da carreira deles fosse hoje e se inventassem de cantar sucessos eivados de violência e ressentimento contra as mulheres. Bombardeio incansável nas redes sociais, Justiça cobrando explicações e podendo proibir a execução das músicas, além da ameaça de não cantá-las em shows financiados com dinheiro público seriam algumas das prováveis reações, sem falar no incômodo de ter o nome associado a um adjetivo que cheira a conservadorismo e ignorância – machista. Para o bem e para o mal os tempos mudam e, neste caso, para muito melhor, há que se reconhecer, graças ao trabalho de cantoras/compositoras donas de voz e língua afiadas. Hoje elas dão o troco com o mesmo arsenal feito de notas musicais – e são certeiras.
Imagine uma marchinha em que o autor/intérprete propõe:“Esta mulher/ Há muito tempo/ Me provoca/ Dá nela!/ Dá Nela!”. Era Ary Barroso incendiando os salões cariocas, no carnaval de 1930, naturalmente muito aplaudido por foliões habituados a tratar mulheres como meros objetos de desejo, todas submissas às vontades/caprichos deles, sem cuja “proteção” não saberiam sobreviver (e nem tentassem provar o contrário). Se boazinhas, comportadas, respeitosas e atentas aos deveres de esposa, escapariam dos ataques e ironias disfarçados de brincadeira ou de inocentes desabafos musicais. Caso contrário, entrariam para a longa lista de musas malfaladas em verso e prosa, condenadas pelo pecado de não aturar com paciência a boemia do “dono”.
Já parou para prestar atenção em Camisa Amarela (1939)? O mesmo Ary descreve um marido que se joga na folia e é encontrado pela mulher, na Lapa, “chumbado, mamado, com reco-reco na mão”. O malandro, conseguindo se perder entre milhares de outros bêbados, só volta para casa na quarta ingrata, ronca uma semana e acorda mal-humorado, querendo brigar com a “patroa”, que depois de providenciar-lhe água e bicarbonato é recompensada pela decisão dele de queimar a camisa com a qual se esbaldou à vontade longe dela, aprontando sabe Deus lá o quê.
Mais de 80 anos depois, quando a marchinha O teu cabelo não nega (Lamartine Babo) quase faz mulheres negras pular em cima do CD, mesma vontade que têm outras ao ouvir Mulher indigesta, de Noel, a ordem é, como dizem as mais jovens nesta estrada, “não deixar barato”. A baiana Karina Buhr (que cresceu no Recife), por exemplo, aparece desafiadora em seu terceiro álbum, Selvática, disposta a influir para evitar fãs com postura de “capacho”, enquanto veteranas como Elza Soares e Alcione dão recados importantes. A primeira ensina que “mulher tem que ir para a rua gritar”, e a segunda lembra, em Maria da Penha, que elas precisam se proteger (“Comigo não, violão/ Na cara que mamãe beijou/ “Zé Ruela” nenhum bota a mão/ Se tentar me bater/ Vai se arrepender”).
Ainda assim, demonstrando no mínimo indiferença à luta delas e às considerações do genial Capiba no frevo Cala boca menino, de 1938 (“Ouvi dizer que numa mulher/ Não se bate nem com uma flor/ Loura ou morena/ Não importa a cor/ Não se bate nem com uma flor”), gente da mais fina flor da Música Popular Brasileira derrapa na tentativa de parecer original, diferente ou excêntrico. Zeca Pagodinho prestou enorme desserviço à causa com a perversa Faixa Amarela (“Mas se ela vacilar/ Vou dar um castigo nela/ Vou lhe dar uma banda de frente/ Quebrar cinco dentes e duas costelas”). Porém, mais consciente e solidário, Martinho da Vila teve a sensibilidade de, convidado a interpretá-la, substituir “vou lhe dar” por “sem lhe dar”. A distância entre o samba de um e a educação do outro revelou-se abissal. Até Caetano Veloso não resistiu e resolveu fazer uma releitura de trecho de Um tapinha não dói (Furacão 2000) para o disco Noites do Norte, gravado em 2001, mas, em um dos ensaios abertos, recebeu sonora vaia. Deve ter doído.