Em Foco 2311
Vera Baroni, 70 anos, redescobriu-se como mulher negra feminista após adentrar o universo do candomblé, religião de seus ancestrais.

Marcionila Teixeira (texto)
Nando Chiappetta (foto)

Vera Baroni nasceu com a pele preta da mãe. Um dia, perto de completar 60 anos, recebeu um convite. Aconteceu durante uma apresentação de afoxé, no Pátio de São Pedro, no Centro do Recife. Naquela ocasião, sua cor começou a ganhar outros significados. Os símbolos do passado ressurgiram fortes. Era uma criança, quando, dentro de casa, percebia o movimento silencioso da mãe em adoração aos orixás. Um culto às escondidas, permeado pelo peso da lei das contravenções penais. Os tempos eram difíceis para os seguidores de religiões de matrizes africanas. Na realidade, nunca foram fáceis. Mulher negra feminista, Vera, já adulta, ainda parecia temer o sobrenatural observado nas cenas de menina. O convite para conhecer mais um terreiro foi aceito.
Em dezembro, Vera completa sete anos de iniciada no candomblé. Ao que parece, puxou não apenas a cor da pele da mãe, mas também sua religião. A advogada com especialização em direitos humanos e saúde coletiva também é yabassé, responsável pelo preparo dos alimentos sagrados no candomblé. Através de suas mãos hábeis, prepara comida para agradar aos orixás e matar a fome dos vizinhos do terreiro que frequenta em Dois Unidos.
O orgulho negro de Vera também alimentou-se de histórias de outras mulheres como ela. Em 2003, quando criou um movimento novo em Pernambuco, a Uiala Mukaji, Sociedade das Mulheres Negras de Pernambuco, ela foi a campo. “Uma das nosssas finalidades era buscar histórias de mulheres negras pernambucanas. Na época, descobri que a maioria era do candomblé. Percebi que não podia mais fugir de minha religião. Minha mãe nasceu em Cachoeira, berço do candomblé na Bahia”, conta.
Ao adentrar na religião de seus ancestrais, Vera rompeu com um universo católico forte, que lhe empoderou como defensora de direitos humanos. Nascida no Rio de Janeiro, ela tinha quinze anos quando, a convite da paróquia do bairro onde morava, conheceu uma massa de nordestinos nas salas de aula de uma escola radiofônica montada no Colégio Sion. O método Paulo Freire auxiliava a adolescente a ensinar a ler e escrever uma maioria analfabeta, formada por domésticas e trabalhadores da construção civil, afastada de seus estados de origem, forçada a migrar pela necessidade de sobrevivência.
“Ficava admirada especialmente com a forma como o pernambucano falava de sua terra, da saudade que sentia das manifestações e do fazer cultural. No Rio de Janeiro, terminavam isolados nas obras, eram desrespeitados, chamados de paraíba. Na escola, se sentiam bem”, lembra. Em tempos de ditadura, as escolas radiofônicas foram consideradas subversivas e terminaram fechadas. Vera partiu. Pernambuco fazia parte de seus planos. Tornou-se recifense por opção em 1967.
Na semana passada, Vera Baroni, agora com 70 anos, conquistou o Prêmio Orgulho de Pernambuco, na categoria cidadania, entregue durante as comemorações pelos 190 anos do Diario. Ocupou o alto da página da coluna social. Mas a agraciada deseja mais. Quer o fim do racismo nas relações. “Caiu o mito da democracia racial. Se ela existisse, os negros estariam em espaços de poder. A hora é de respeitar as diferenças”. Vera está coberta de razão. Hoje muito mais que ontem.