Compositor de frevos inesquecíveis, artista dividirá homenagem com outros grandes da folia olindense como a troça Eu Acho É Pouco e o bloco Flor da Lira.
Luce Pereira (texto)
Hesíodo Góes (foto)
A programação do carnaval de Olinda foi anunciada ontem e novamente a prefeitura reuniu apenas as pratas da casa para animar os já animados e fiéis foliões da festa no município, que neste ano vão render, especialmente, homenagem a Alceu Valença. Nada mais justo, porque, afinal, o artista é tão íntimo da cidade quanto as ladeiras dela e tão filho quanto o mais olindense de todos. Só por isso a brincadeira já mereceria ser memorável, com muitas estrelas da MPB dando “canja” da sacada do palácio municipal e do sobrado onde o cantor reside, nesta época. No entanto, com agendas tão espremidas quanto o orçamento da anfitriã, não estarão presentes. Mas quem sentiria falta mesmo, se a folia por lá pede apenas irreverência, bom humor, pernas e fôlego?
É um carnaval que não pode ser medido somente com um punhado de adjetivos, porque nem mesmo imagens conseguem traduzi-lo. Para saber a real dimensão tem que brincar e brincar sem reservas, sobretudo atrás dos blocos e troças mais queridos. A lista do que vale a pena impressiona: Eu Acho É Pouco, Ceroula, Homem da Meia-Noite, Pitombeira, Elefante … Por isso, até mesmo aqui há uma espécie de exigência implícita de certa “logística”, facilitada, nestes tempos modernos, pelas redes sociais. Ninguém perde a viagem. Ninguém se frustra com uma possível mudança de itinerário. Ninguém volta para casa impunemente – com garganta e pernas inteiras. Mas, mesmo quem não aderiu ao imediatismo dos smartphones e não quer correr riscos, pode evitar surpresas folheando o velho e bom jornal ou se valendo do indefectível bloquinho de anotações.
Apenas na Marim (dos Caetés), as velhas formas de não perder nada da folia sobrevivem. Na sala da casa que abriga numeroso (e geralmente ruidoso) grupo, lá estão elas, as anotações sobre o “filé” dos desfiles, pois depois ninguém pode dizer que não foi avisado. Afinal, para quem chega ao sítio histórico de saco às costas e colchão debaixo do braço, equívocos assim são vistos como “vacilos de amadores”, de gente que ainda não debutou no furdunço dos cinco dias mais insones do ano – estes, em 2016, sob a lona do Circo de Alceu. É o tema da festa. Por isso, os célebres frevos do artista deverão ser ouvidos sem parar, o que nunca representaria, de fato, sacrifício para qualquer folião que se desafia a sobreviver até o fim do Bacalhau do Batata. Todos cantam como se estivessem acompanhando a letra do hino de Elefante, “com todo o ardor”.
De acordo com o que foi dito, ontem, o carnaval de Olinda terá 500 “atrações” e nove polos. Mas o que a otimista propaganda oficial classifica de “atrações” não deve ser levado ao pé da letra, pois isto implicaria na oferta de uma grade diferenciada, quando se sabe do sacrifício feito pela maioria (grupos e artistas), durante o ano, para conseguir meios de sobreviver até o glorioso dia do sobe e desce ladeira. Só quem se apresenta tem ideia do que significa colocar o bloco na rua, mesmo sendo claro que a glória do carnaval de Olinda é feita justamente desse sacrifício e dessa devoção.
Porém, independentemente do exagero da classificação, o certo é que “na mistura colorida da massa” estará escrita, mais uma vez, a grandeza do carnaval da Marim, que Alceu Valença ajudou a construir – com música e amor escancarado. Como se fosse ele mesmo um daqueles foliões sempre agradecidos e dispostos a repetir sem cansaço algum: “Olinda/Tens a paz dos mosteiros da Índia/ Tu és linda/ Pra mim és ainda/ Minha mulher”.
[ uma curiosidade sobre Alceu Valença e esse bloco: NÓÍS SOFRE MAS NÓIS GOZA – que conctinuará saindo nos próximos carnavaais : houve um ano, um breve concurso de fantasia, um deles, parodiando uma história de cordel, foi “A Chegada De Alceu Valença No Inferno” (claro que ele nem compareceu… tinha apoioado um candidato que não era o das esquerdas, e seus simplismos) ] ^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^
• Antônio Maria: “Carnaval antigo… Recife”
No Recife, o Carnaval começava no Natal. Ou melhor, não havia Natal no Recife. A 24 de dezembro, os blocos saíam à rua, com suas orquestras de trinta a quarenta metais, seus coros de vozes sofridas, a tocar e a cantar as “jornadas” mais líricas. Chamavam-se “jornadas” alguns dos cantos carnavalescos do Recife, talvez por influência das “jornadas” dos pastoris. Agora, porque os cantos dos “pastoris” se chamavam jornadas, não sei.
Mas, na noite de 24 de dezembro, quando a gente pensava que seria uma noite silenciosa, o Vassourinhas estourava numa esquina, acordando-nos, na alma, uma alegria guerreira, impossível de explicar agora, tanto tempo e tanta fadiga são passados. Nós íamos, primeiro, às janelas, depois para a rua, até que afinal nos misturávamos ao povo, onde cada rei fantasiado, cada rainha de cetim, eram reis de verdade. Mas, reis de quê? De tudo. Da voluntariedade, do absolutismo, do amor e do futuro. O futuro de quem faziam parte.
Não se pode fazer ideia do que era o povo do Recife, solto nas ruas do Recife, após a declaração irreversível do Carnaval. Faziam parte da corte imperial mulheres morenas, que suavam, em bolinhas, na boca e no nariz. Mulheres de olhos ansiosos, presas de todos os atavismos de religião e de dor, a dançar a mais verdadeira de todas as danças – o frevo. Ah, de nada serviam suas heranças de submissão, porque o despontar do Carnaval era um grito de alforria. E seus corpos, seus braços, seus pés, teriam sido repentinamente descobertos, assim que os clarins do Batutas de São José romperam o silêncio a que os humildes eram obrigados. Tão louca e tão bela, aquela dança! Uma verdade maior que as verdades ditas ou escritas saía dos seus quadris, até então bem-comportados.
Se fosse possível descrever, em palavras, a introdução, ao menos a introdução, da marcha do clube das Pás! Mas é possível dar uma ideia do que se passava por dentro de mim, que me sentia, inopinadamente, órfão e livre, desapegado de tudo e de todos. Eu era mais que um guerreiro. Era o vento. Cada homem e cada mulher eram uma parte daquele furacão libertário. Todos se emancipavam (eu digo por mim) e se tornavam magnificamente dissolutos… porque o clarim estava tocando, porque os estandartes se equilibravam no espaço, porque o mundo, naquele exato e breve momento era, afinal, de todos.
Tudo deve estar mudado. O Carnaval do Recife talvez não seja, hoje, um desabafo. Talvez não contenha aquele desafio de homens e mulheres, livres de todas as sujeições e esquecidos de Deus. É possível que se tenha transformado numa festa, simplesmente. Talvez seja alegre e isto é sadio. Mas os meus carnavais eram revoltados. Não tenho a menor dúvida de que aquilo que fazia a beleza do carnaval pernambucano era revolta – revolta e amor – porque só de amor, e por amor, se cometem gestos de rebeldia.
Muitas vozes, de madrugada, o menino acordava com o clarim e as vozes de um bloco. Eles estavam voltando. O canto que eles entoavam se chamava “de regresso”. Não sei de lembrança que me comova tão profundamente. Não sei de vontade igual a esta que estou sentindo, de ser o menino que acordava de madrugada, com as vozes de metais e as vozes humanas daquele Carnaval liricamente subversivo.
Meu quarto era de telha vã. Minhas calças, brancas. Meus sapatos, de tênis. Meu coração, inquieto. E nada tinha sido ainda explicado.
• O recifense Antônio Maria (Araújo de Morais), jornalista e compositor, foi um dos maiores cronistas brasileiros de todos os tempos. Na música popular, compôs canções imortais como Ninguém me ama (sucesso em todo o mundo na voz de Nat King Cole), Menino Grande, Manhã de Carnaval, Canção da Volta, Valsa de uma Cidade, e frevos, dos quais o mais famoso é o Frevo Número 1, que Maria Betânia regravou.Texto publicado em 7 de fevereiro de 1964
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