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A ditadura militar ainda duraria mais cinco anos, mas aquele janeiro de 1980 anunciava que os tempos estavam mudando. Com a censura à imprensa mais frouxa e uma sociedade ávida por liberdades civis, o simples ato de expor os seios provocou uma revolução que alcançaria o seu ápice no carnaval. Pernambuco, como sempre, estava à frente. Uma estudante recifense foi a pioneira no Brasil em conseguir na justiça o direito de praticar o topless e a folia da capital teve fartura de adeptas, seis delas aparecendo até na primeira página do Diario de Pernambuco do sábado de Zé Pereira. Elas eram funcionárias do Aritana, bar pioneiro neste tipo de falta de vestimenta superior. Dois anos antes, Ney Matogrosso alcançava o sucesso com Não existe pecado ao sul do Equador, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Agora o alvo era o que estava ao norte do umbigo.

Tudo começou no dia 4 de janeiro de 1980. Na capa do do jornal mais antigo em circulação na América Latina, a foto de duas garotas deitadas na areia de Ipanema, no Rio de Janeiro. A chamada explicava o uso de uma imagem que seria tão banal: “Nas areias de Ipanema introduzida em definitivo a bela moda do topless”. A prática, comum entre as europeias, teve repercussão na página de Opinião do Diario do dia seguinte, com direito a charge sobre o tema.

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Na edição de domingo, 6 de janeiro, o Diario destacava o resultado de uma enquete onde o “topless ainda não é aceito pela mulher pernambucana”. O assunto frequentou o jornal nos dias seguintes, com registros da prática no Rio Grande do Sul, Bahia e Pará. Nestes três estados, a polícia agia contra as banhistas mais ousadas.

Até que, no dia 19 de janeiro, um sábado, a capa do Diario trazia a notícia bombástica: uma estudante pernambucana conseguia um salvo-conduto permitindo que fizesse topless. Carlene Barbosa, 20 anos de idade, tornava-se a pioneira no Brasil ao ter habeas-corpus concedido pelo juiz da 4ª Vara Criminal da Capital, José Edgar de Vasconcelos Dutra.

O jornal reproduziu, na íntegra, o pedido feito pelos advogados José Augusto Lins e Cláudio de Melo Cavendish. Eles citaram os índios, José de Alencar e até as chacretes para mostrar que Carlene somente queria seguir a moda. O final é uma pérola: “a prudência fala mais alto e para prevenir situações, requereram a concessão de salvo-conduto a fim de que, sem temor de uma compulsão, possa a paciente tostar seu torso nas belas praias do nosso litoral”.

Um dia depois, Carlene volta a figurar na capa do Diario. Mesmo com habeas-corpus, ela acabou agredida quando tentou bronzear os seios na praia de Boa Viagem. Banhistas e vendedores de picolé cercaram a pioneira e começaram a jogar areia e gritar “joga bosta na Geni”, uma alusão à música Geni e o zepelim, de Chico Buarque. Apesar de não esperar tão reação, ela se mostrava confiante: “acredito que outras mulheres seguirão meu exemplo e aderirão à salutar moda”. Na mesma edição, o chargista Lailson fazia alusão ao topless e também a outra moda: o bigodinho.

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Carlene não desistiria. A edição do Diario de 27 de janeiro informava que ela agora tinha a intenção de fundar um clube de praia para as praticantes do topless. Ele pretendia pedir ao prefeito Gustavo Krause a delimitação de uma área na praia de Boa Viagem onde as adeptas do modismo “ficariam longe das investidas dos canibais”. A estudante agora se dedicava a participar de programas de TV e viajaria a a São Paulo a convite da Rede Tupy.

Quando fevereiro chegou, os colunistas e articulistas do Diario apostaram que o topless seria a grande moda do carnaval. A folia teria o mela-mela autorizado pela Secretaria de Segurança Pública. Os blocos mais anárquicos, como o Siri na Lata, já anunciava que teriam alas com moças mais desinibidas. O delegado de Costumes, Francisco Edilson Sá, pronunciava-se contra, apesar de não haver nenhuma proibição legal. No dia 2 de fevereiro, a capa do Diario trazia a informação de que a prática seria proibida por ser “ofensiva ao pudor”.

Neste mesmo 2 de fevereiro, a polêmica do topless ganhava um novo ingrediente. Uma barraca na praia de Casa Caiada, em Olinda, tinha como atração uma garçonete com os seios de fora. Segundo a reportagem, “a frequência aumentou consideravelmente. À tarde, muitos homens têm faltado ao trabalho para tomar uma cerveja à beira-mar, acompanhada de peixe frito, e da excitante presença da garota”. Uma viatura da Polícia Militar evitava o assédio dos mais afoitos. No dia seguinte, um domingo, o caderno Panorama trazia texto assinado por Severino Barbosa abordando o “charme discreto do verão nordestino”.

No dia 5, o jornal voltou a abordar o caso da garçonete desnuda de Olinda. Descobriu-se que ela era menor de idade e o proprietário da barraca era autuado por indução à prática de atos obscenos. No dia 10, a responsável pelo Diario Feminino, Zenaide Barbosa, abordava o topless a partir da moda praia infantil. “É claro que o topless é o que mais de gostoso e prático de usar”, afirmava.

No dia 15, a capa do Diario anunciava que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil condenava a permissividade, enquanto o desembargador Agamenon Duarte solicitava à polícia pernambucana que protegesse as seguidoras do topless durante o carnaval. “A agressão às moças representa um crime contra a liberdade individual que dá a cada pessoa o direito de se vestir de acordo com o seu gosto”.

No dia 16, sábado de carnaval, o jornal confirmava que o topless era a grande atração do carnaval de rua do Recife. Para provar isso, estampou em sua primeira página uma grande foto com seis mulheres com os seios de fora, bailando na Avenida Conde da Boa Vista. Eram profissionais do bar Aritana, que funcionava próximo ao bar Mustang. O estabelecimento era famoso justamente por ter garçonetes que atendiam a clientela de topless, antes da moda ganhar as praias. Na mesma edição, o chargista Clériston dava a sua versão para a polêmica.

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Na quarta-feira de cinzas, dia 20 de fevereiro, o Diario trazia em sua edição um grande balanço da folia. Uma página inteira foi dedicada ao topless, com direito a fotos de praticantes flagradas no Baile dos Casados. “Num desafio de liberdade, de mostrarem totalmente desnuda a parte física mais bonita que têm, elas mostraram os seios. É o tempo e a vez do topless. Em toda parte – nas ruas e nos clubes – foram vistas bonitas e ousadas garotas aderindo à nova onda do topless. O que no Rio está sendo discretamente ensaiado nas praias, muito mais para satisfazer a avidez dos repórteres fotográficos, aqui está querendo virar moda, nestes dias de tempo e frevo bem quentes. Mas é isso mesmo. Do lado de baixo do Equador não há pecado…”

Na mesma edição, na página de polícia, a informação de que mãe e filha teriam trocado tiros por causa do topless. A que tinha intenção de tirar a parte de cima do biquíni terminou com um tiro na barriga.

No dia 22, o colunista social João Alberto fazia o balanço definitivo: “após ler todos os jornais do Sul, me veio a certeza de que em matéria de topless o carnaval do Recife liderou de ponta a ponta”.