A cultura se sobrepõe à crise e época passa a refletir a alegria dos nordestinos com o São João
Luce Pereira (texto)
Greg (arte)
A pátria das sanfonas está a todo vapor para reafirmar, mais uma vez, uma verdade de séculos: São João é o único santo da Igreja Católica que faz as conversas sobre crise perder a graça logo no primeiro “causo”, ainda mais se os envolvidos na prosa são herdeiros da genética legada por antepassados do interior. Basta ter início a segunda quinzena de junho para noticiários que berram a via crucis na política e na economia se transformarem em puro enfado, como se, de repente, todos se liberassem da tarefa de sofrer pelo que se segue, a perder de vista, sem remédio. É a força da cultura alegre e simples se sobrepondo às aflições cotidianas, para lembrar que “tem tanta fogueira, tem tanto balão”. Hora de abençoar os ouvidos com a música das quadrilhas, do forró nos terreiros, e agradecer pela gastronomia rica em sabor e afeto, capaz de impressionar qualquer forasteiro. Trata-se de uma ordem de São João, impedir que a realidade passe perto dos dias dedicados a ele e, sabidos que só vendo, os nordestinos obedecem.
É longe dos grandes centros urbanos que reluz o amor a João, santo que lembra alegria e fartura, ainda que os rios tenham sido bebidos pelo sol e o saldo de tanta sede produza duros reflexos no dia a dia. Sempre há um jeito de garantir espigas de milho na panela, lenha para a fogueira, bandeirolas improvisadas, rezas e adivinhações. Nas feiras, já não se compra a sobrevivência pura e simples, mas a alegria dos dias que faltam para o 23 de junho. E apesar dos mares tormentosos por onde navega a economia nos dias de hoje, o povo se arruma como pode para não decepcionar o dono da festa. Quem não vai às feiras do interior, nesta época, não pode fazer ideia do humor que melhora a olhos vistos, como se o serviço de meteorologia estivesse prometendo chuva suficiente, dali a pouco, para rio ser chamado de rio outra vez.
Curiosamente, no interior, apesar do tempo que separa a época de ouro das bandas de forró pé de serra do apogeu das eletrônicas, uma energia especial dita o ritmo da rotina nas cidades. É quase certo que algum conhecido virá de longe e pode ser que o céu resolva fazer algum agrado, mandando chuva – não no dia, mas na vépera. É um tempo de esperança, portanto, criado a partir da “ordem de ser alegre”, dada por João. Inteligentemente, a maioria obedece e assim passa a destoar da parte sisuda do país, que segue presa à teia criada pela crise, eleita tema de todas as horas.
Escolher Pernambuco como destino, nesta época do ano e nas circunstâncias atuais, é abrir as portas para deixar entrar a alegria mais genuína, aquela que não dá trégua nem quando o sanfoneiro pára para tomar “água que passarinho não bebe”. Se a preferência recair sobre Caruaru, Gravatá ou Arcoverde, os maiores, melhor saber que não são para “principiantes”, gente que não aguenta forró pesado a perder de vista. Neste caso, não faltam receitas mais comedidas – e nem por isso menos saborosas. Triunfo (Sertão), por exemplo, que ainda conserva ares dos festejos como eram no tempo em que Gonzaga sugeria “olha pro céu, meu amor, vê como ele está lindo!”.
João chama, a festa se aproxima. De repente, passagens aéreas do Sudeste para cá dão pulo fenomenal como o bacamarteiro quando larga o tiro no chão, colocando em desabalada carreira desavisados turistas. Zé de Caruaru, vigia há 30 anos em São Paulo, diz, morrendo de rir, “se tem crise, não me ´alembro´ ‘’, faz questão de falar como quando saiu de sua terra. Línguagem do coração. Há cinco anos, economiza para pagar três passagens de avião, chega na terça, com a mulher e a filha de 24. Quando colocar os pés no Aeroporto dos Guararapes, será a própria tradução do espírito da festa em Pernambuco: “Vamos ser compadres, que São João mandou”.