Quem está no poder deve ser guardião e exemplo dos atos que não podem ser cometidos
Vandeck Santiago (texto)
Heuler Andrey/AFP (foto)
Corria o ano de 1984 e o então governador Roberto Magalhães estava recebendo cumprimentos no Palácio do Campo das Princesas quando de repente chega Faca Cega, popular líder comunitário do Recife na época e um entusiasmado eleitor dele.
– Vim aqui para saber do governador quais são suas diretrizes e indiretrizes.
Homem sisudo, professor da Faculdade de Direito, Magalhães espantou-se:
– Como assim? Indiretrizes?
E Faca Cega, didático:
– Diretrizes é o que o senhor quer que a gente faça; indiretrizes, o que o senhor não quer que a gente faça.
Não sei que resposta Magalhães deu, mas tirando o aspecto jocoso do neologismo criado por Faca Cega, o fato é que autoridade e governantes têm também esta obrigação – de ser uma espécie de farol do que não se deve fazer. Quem detém o poder deve ser ao mesmo tempo guardião e exemplo dos atos que não devem ser cometidos.
Infelizmente, não é o que costuma acontecer. Em 5 de julho de 2004 o então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, fez uma declaração contundente durante o balanço dos primeiros 18 meses do governo Lula. “Este governo não rouba, não deixa roubar e combate a corrupção”, afirmou Dirceu. “Este é um compromisso histórico nosso”. Entre outros itens, citou que o governo criara 93 ouvidorias para receber as reclamações da sociedade sobre o assunto.
Para efeito de argumentação, digamos que Dirceu estivesse sendo 100% sincero – ao longo dos governos petistas, porém, isso não impediu que atos condenáveis na área da corrupção acontecessem. Entre outras causas, porque o PT não se interessou em quebrar (ou tentar, pelo menos) o sistema político que engendra um terreno movediço em que dinheiro de empresas e empreiteiras migram ilegalmente para políticos e partidos. Ao contrário, mergulhou nele com apetite.
Não sou eu quem o diz; é o petista Gilberto Carvalho, ex-ministro de Dilma e ex-chefe de gabinete de Lula. “Eu sei que o PT errou, nós temos de reconhecer que errou”, diz ele, em entrevista na FSP de 7 de março passado. “Além de não combater o financiamento empresarial, meteu-se a cometer erros através de várias pessoas, que se locupletaram (grifo meu). Não quero de maneira nenhuma negar isso”.
Outro petista conhecido, Jacques Wagner, tratou do assunto também em entrevista à Folha, publicada em 3 de janeiro passado, quando ele ocupava o cargo de ministro da Casa Civil do governo Dilma Rousseff. Título da matéria: “PT reproduziu metodologias antigas e se lambuzou, diz Jacques Wagner”. O então ministro criticava o partido por não ter mudado “os métodos do exercício da política”, e em vez disso ter ficado “usando ferramentas que já eram usadas”.
A bem da verdade, diga-se que não foi o PT quem criou estes “métodos” – eles vêm de longe e contemplaram todos os grandes partidos, incluindo (claro) aqueles que ultimamente vêm querendo parecer sacerdotisas imaculadas. Indo para o outro lado do campo político, atentemos para os Diários da Presidência, do Fernando Henrique Cardoso, livros em que ele recorda seus tempos na presidência e o relacionamento com alguns políticos. Em trecho do volume 2, com data de 26 de abril de 1997, FHC reclama da pressão do PMDB para nomear Eliseu Padilha para o Ministério dos Transportes. “O PMDB entrou em nível de chantagem”, escreve FHC, adiantando: “Eu já tinha decidido que não vou nomear Eliseu Padilha (…), porque esta pressão está cheirando mal”.
Um mês depois, FHC capitulou: nomeou Padilha para o Ministério dos Transportes, no qual ele ficou por quatro anos, só saindo em 2001. O lamento de FHC, no mesmo livro, mesmo volume: “É o fim desse sistema político corroído. Se ele não está corrompido, está corroído”. Só informando: Padilha foi também ministro de Dilma (Aviação Civil) e agora é ministro da Casa Civil do governo interino de Michel Temer.
Vejam vocês que, mesmo tomando as declarações de José Dirceu e FHC como absolutamente sinceras, parece que os governantes não têm como garantir o cumprimento de suas indiretrizes. É como se acima deles houvesse uma força maior, à qual têm de ceder para se manter governando. Se algum deles decretar como indiretriz primeira “Não receber propinas”, não terá certeza que isso será cumprido, e talvez nada possa fazer caso veja algumas portas sendo abertas para o descumprimento da determinação. Se Faca Cega (falecido em 2008) retornasse a uma fila de cumprimentos e ficasse indignado ao ouvir isso, teríamos de lhe dizer: “É o sistema, Faca Cega, é o sistema…”