26.06

Junto com o cheiro e sabor dos bolos regionais, o mês traz as melhores lembranças para o nordestino.

Silvia Bessa (texto)
Nando Chiappetta (foto)

Seu Osório ficava sentado. Em torno dele e da grande fogueira instalada no Engenho Laranjeiras, em Cortês, ali na Zona da Mata de Pernambuco, dez filhos, noras, netos, vizinhos, amigos. Eram agasalhados pela comida boa mexida horas e horas por dona Anita, que cuidava atentamente de uma panela de barro apoiada sobre uma chama do fogão à lenha e era reverenciada pela dedicação aos costumes juninos. Dona Lúcia, uma das dez da prole  Calazans, lembra do cheiro daquele momento até hoje e o reproduz com um prazer que lamento por minha incapacidade de narrá-lo com perfeição.
“Eu tinha 12, 13 anos e ficava ali olhando para minha mãe. Ela ia passando o que sabia para uma e para outra mulher”, emociona-se dona Lúcia, hoje com 67 anos. “Não me acho no direito de interromper essa tradição, então vou para cozinha ainda que minha saúde não esteja boa”, contou ela quinta-feira passada, numa das paradas para mexer a pamonha que distribuiria para quem ama. Dona Lúcia repete o que aprendeu: pamonha como antigamente, na palha do milho descascado arduamente no dia anterior, com sal e açúcar “muito bem dosados” – destacou. “Esta época junina traz lembranças muito boas da minha família…”, suspirou dona Lúcia. Deve acontecer o mesmo com Éric, Nicolas e Maria Fernanda, netos de dona Lúcia, que acompanhavam parte da cuidadosa produção, além de  Luca e Diego.
O melhor do período junino, para mim, está nestes detalhes esmiuçados por dona Lúcia e por tantos outros nordestinos. Se você prestar a atenção, por aqui há sempre quem tenha uma boa história ligada à comida desta época. Por isso, o melhor do mês de junho é o imaterial que aguça o sabor de qualquer canjica, pamonha, bolo de milho, de pé-de-moleque. O melhor é o reencontro que as festas oferecem com nosso passado. Com as nossas memórias afetivas. Com cheiro e sabor do carinho trocado nos momentos de comemoração. Muitas com cara de infância, tendo a família como pano de fundo.
Ao longo da semana uma conhecida falava sobre sua saudade da infância. Contava o quão cansada ficava ao ver, menina pequena, toda a parafernália de sua mãe preparando comida de milho. “Raspador de coco, farinha de mandioca, depois de horas a mesa estava farta”, contava Ana Menezes. “Faz tempo que não esqueço”. Outra dizia que as mais doces lembranças da sua meninice são as ligadas às mulheres se revezando para mexer a papa e não empolar a canjica. Ah, o São João que faz tantos de nós recordar…
O chef Leandro Ricardo tem orgulho de contar que foi neste período que surgiu o “gostar de cozinhar”. Diz ele que observava a tia Rosimery e a vizinha quituteira, dona Nair, desde a mais tenra infância e o mês de junho trazia consigo uma alegria fora do comum. Para as festividades que inspirou para uma profissão, Leandro Ricardo, um dos chefs mais renomados de Pernambuco, escreveu o poema abaixo. Belo, é ele a melhor tradução das lembranças, da memória afetiva que este artigo evoca e que tem sido dissipada baixinho nas rodas de conversas por aí nos últimos dias:
“Acontecia como um ritual, um rito//
Todo ano tudo, das espigas (de milho) incógnitas a atividade incessante de ralar como se a vida esmigalhada se recompusesse em canjica//
A canela adoçava os narizes incrédulos e o cravo evocava toda a malicia e calidez dos pensamentos//
Um alento, tudo era alento, até o calor e as fagulhas, centelhas de desejos obtusos e coloridos como as bandeiras, o vento frio e a fumaça. Brilhavam os olhos refletindo todos os artifícios das almas, faiscantes almas…”.
Porque São João e São Pedro, como diz Leandro, é mais que luz, cores, cheiros. É alma nordestina.