29.06

Jovem francês vira sucesso de vendas ao escrever a própria história sobre como deu um nó no preconceito.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Num futuro distante, cem anos depois que a Terra foi destruída por bombas nucleares e os humanos fugiram para o espaço, um grupo de cem jovens retorna ao planeta para comprovar se ele voltou a ter inquilinos. São liderados por Clark Griffin, uma valente comandante que não é odiada pelos inimigos por ser bissexual, mas por sua inteligência, força e habilidades. Nesta época, não importa quem se eleja para dividir a cama e a vida, pois, decorrido tanto tempo, ninguém mais lembra que este tipo de preconceito existiu. As pessoas não estão nem aí para etiquetas, só querem sobreviver, dar e receber amor. Comendo pipoca enquanto a TV exibe a série The 100, a atual onda de conservadorismo que dispara chumbo grosso contra o segmento LGBTI parece tão distante quanto o intervalo que separou Griffin e sua turma de termos como gays, lésbicas e transgêneros. No entanto, basta mudar da ficção para o noticiário e logo se percebe que, na atualidade, os “heróis” são outros – pessoas que decidem escancarar as portas do “armário” e ir á luta contra o ódio, críticas e ameaças lançadas contra quem resolve viver livremente sua orientação sexual.
No meio desta extensa lista passou a constar o nome da ministra britânica do Desenvolvimento Internacional, Justine Greening. Ela escolheu o último sábado, quando acontecia a Marcha (londrina) do Orgulho Gay, para declarar, através de sua conta no Twitter, que está envolvida em uma parceria do mesmo sexo. Recebeu, como era de se esperar entre pessoas civilizadas, os cumprimentos do primeiro-ministro David Cameron. Mas,se para Greening o desafio da exposição exigiu apenas coragem, para o jovem escritor francês Édouard Louis, 22 anos, significou o passaporte para sair do inferno em que a orientação sexual transformou sua vida desde a infância. Foi salvo pela literatura, que fez do seu sofrimento uma vitrine a partir da obra Para Acabar com Eddy Bellegueule, uma autobiografia com mais de 250 mil exemplares vendidos, publicada pela portuguesa Fumo Editora e traduzido para mais de dez línguas.
Embora cuspe na cara, surra e outros tipos de tortura tenham sido comportamento comum a meninos criados sob a proteção do regime da suástica, para lembrar a crianças judias qual de fato era a raça “superior”, o garoto nascido na cidade francesa de Picardia (ao Norte) era alvo dos mesmos maus-tratos há apenas alguns anos, em pleno século 21. Bastava chegar à escola e apanhava de dois meninos, aos quais nunca se referiu, preferindo fugir de casa, aos 16 anos, mudar de nome (de Eddy para Édouard), de endereço e de destino ao decidir escrever seu próprio martírio, revelado com rara sensibilidade, e onde põe em xeque uma sociedade que diz primar pelo igualitarismo e pela cultura. Universitário, morando em Paris e a dois passos de finalizar o segundo livro (fala sobre as condições miseráveis de vida dos imigrantes argelinos na França), não perde a chance de ressaltar que a violência é produzida pelo sistema e que o silêncio é uma arma apontada para a própria vítima. Rompê-lo, eis a questão.
O sucesso, naturalmente, não tornou a vida em família um mar de rosas para Édouard – muito pelo contrário: acentuou as diferenças, pois, vindo de um meio rude e sendo o único a frequentar universidade, enfrenta censura e recebe críticas pelo modo delicado de falar, de se vestir, de se portar. “Acham que faço isso para humilhá-los”, disse, em entrevista, deixando claro que a possibilidade de diálogo é sempre sufocada pela violência. Mas passa ao largo da exclusão, porque descobriu o caminho, o que, no entanto, não significa o estabelecimento de pacto com qualquer zona de conforto. A causa pela qual passou a militar (inclusive no teatro e em partidos políticos) reflete imensa preocupação com a quebra de paradigmas. Costuma dizer que a causa desta violência está fora dos indivíduos e que não adianta apenas nomear os responsáveis por ela, chamá-los de monstros. É preciso atacar as causas e reformular o que arranca deles as piores respostas. Se não é herói, por ter sobrevivido à selvageria do preconceito, Édouard, o agora escritor com largo caminho à frente, é ao menos (mais um) grande exemplo de que “sair do armário” e lutar por dignidade e respeito pode ser bem mais compensador do que silenciar diante de covardes e criminosos.