24.08

 

Jornalista era tido como um dos mais importantes do país, porque vivia para descobrir verdades incômodas.

Luce Pereira (texto)
Alexandre Gondim/ Estadão Conteúdo (foto)

Existem perdas que realmente deixam sem cor alguns bons hábitos. A do jornalista pernambucano Geneton Moraes Neto é uma delas. Coisas como esperar, por exemplo, uma matéria instigante, inteligente; um livro bombástico; uma crítica bem fundamentada; uma análise irrepreensível de algum fato; um documentário impecável resgatando parte preciosa da memória do país parecerão agora, de certo modo, incompletas, porque tudo isso ele realizava com reconhecida paixão, resistindo, a partir do seu estilo contundente de perguntar, aos vícios que aproximam perigosamente repórteres de fontes. Ontem, dizendo-se muito triste depois de ouvir a notícia do falecimento, o cantor Caetano Veloso tecia-lhe elogios, em sua conta nas redes sociais, lembrando de uma entrevista concedida, há muito tempo, quando voltava do exílio em Londres. A “honradez”, a ética e o profissionalismo do rapaz franzino, de pouquíssima idade, já saltava aos olhos, impressionando a quantos estivessem no caminho da sede que tinha de descobrir verdades escondidas nas entrelinhas da História.
Depois de se transformar em um mestre na arte de fazer perguntas essenciais, virou, naturalmente, o terror de entrevistados com, digamos, alguma “culpa no cartório”. Não porque – ao contrário de tantos colegas de profissão com muito menos méritos – se sentisse o próprio inquisidor, mas pelo simples fato de perseguir verdades. Garimpava-as como pérolas. Ah, como o jornalismo comprometido com as causas mais nobres se ressente da falta de sujeitos assim – enxeridos, abusados, que não fazem concessões nem amarelam nem mesmo na frente de velhos generais linha dura, que embora já não fuzilem com armas são capazes de fazê-lo com o olhar e a voz dez tons acima. Só para saudá-lo com a línguagem da gente da terra, um “cabra” decidido a dar com a língua nos dentes e a contar não apenas uma boa história, mas a história verdadeira. Ele incomodou. E o fez como só conseguem aqueles guiados por uma vocação pulsante desde o primeiro parágrafo escrito. Neste caso, aos 13 anos, nas páginas de um suplemento infantil que o Diario mantinha aos sábados.
Ali fortaleceram-se as asas com as quais voou inclusive para a Europa, onde foi ser correspondente de TV, além de colaborar com jornais. E lá estava o estilo claro, criativo e elegante de transformar notícias comuns em objetos de reflexão, como quando descobriu, no lixão de Londres, um Brasil que só viríamos a ter quase 40 anos depois, em nível de consumo. Contava que havia tantos itens e eletrodomésticos seminovos descartados pelos habitantes que muitos brasileiros viviam nesses lugares a garimpar a ambientação da casa. Leitura inspiradora, convincente. Que aspirante a jornalista como eu, à época, não se sentiria estimulado a também contar histórias? Passei a prestar muita atenção no rapaz, que depois virou editor, escritor (mais de onze livros lançados), crítico, cineasta (não, documentarista, ele preferia assim) e acima de tudo um sujeito capaz de sentir a realidade das ruas, onde a vida acontece de forma “colorida e arrebatadora”.
Surpreendentemente, por mais que entrevistasse (e somaram-se tantos e tão importantes interlocutores, pelo Brasil e pelo mundo afora), não deixava de se sentir renovado para o ofício, como se ele alimentasse cada um dos dias que viveu no exercício dessa paixão. Foram apenas 60 anos – diriam inconformados com a morte tão fora de hora de quem ainda tinha tanto a dizer -, mas o suficiente para o jornalismo nosso de cada dia refletir sobre o bem (e a falta) que profissionais com este nível de comprometimento é capaz de fazer à sociedade. Se lutam para não deixar dúvidas, buscam defender essa sociedade sem qualquer preocupação com o preço a pagar ou o nível de renúncia a que serão submetidos, uma vez traçados os caminhos a seguir. Aqueles que Geneton percorreu estão longe de parecer os mais fáceis ou convenientes, porque ele queria deixar uma contribuição expressiva para a profissão e o país. E deixou. Nos dois casos, vai ser sempre lembrado como um jornalista que nunca se cansou de fazer e dar o melhor de si pelas melhores causas. Enfim, era um sujeito raro.