27.08

 

O que prevaleceu após o impeachment de Fernando Collor, em 1992, foi a concórdia; agora, com Dilma, será a discórdia.

Vandeck Santiago (texto)
Evaristo Sá/ AFP (foto)

Em qualquer área que se verifiquem, as rupturas deitam suas consequências no longo prazo. Não se esgotam em si mesmo; não é aquela coisa de “pronto, acabou, passem a borracha e sigam adiante”. Pelas características peculiares que carrega, o possível impeachment da presidente Dilma Rousseff enquadra-se neste raciocínio.
O impeachment de Fernando Collor em 1992 era praticamente uma vontade nacional, e por isso trouxe a pacificação do país. O de Dilma é completamente diferente, e em vez da concórdia trará em seu rastro a discórdia. O clima de beligerância política que vem desde as eleições de 2014 manterá sua escala crescente, e não deve cessar tão cedo. Torço para estar errado, mas creio que teremos este clima pelo menos por mais dez anos, no mínimo. Os atores principais do drama (na política, na justiça, na luta social) ainda estarão vivos nesse prazo, e – salvo imprevistos – continuarão ocupando papel de destaque em suas áreas.
Convém destacar que as grandes rupturas cobram um preço dos vencedores e vencidos. Se não no curto prazo, com certeza no de médio e longo prazos. Vou dar como exemplo episódio que estudo há 30 anos: o golpe de 1964. Não para dizer que está acontecendo agora a mesma coisa que aconteceu há 52 anos – são processos diferentes, com causas, métodos e efeitos completamente diversos. Para começo de conversa, em 1964 as pessoas foram depostas, cassadas e jogadas na cadeia. Agora, estão dando entrevistas e participando de atos públicos.
A comparação aqui é só no sentido da ruptura, no que ela significa.
Não há ruptura que não desperte de imediato uma renhida batalha sobre “quem está com a verdade”. Ela trava-se diretamente nos ambientes da política, mas também nas universidades, nos movimentos sociais, nas entidades de classe, nas instituições e, por fim, na cabeça de cada cidadão. Em um primeiro momento só o público engajado tem uma opinião consolidada sobre o que aconteceu. Mas novas informações surgem com o decorrer do tempo, os fatos são relacionados entre si, argumentações que se diluíam na fragmentação das posições apaixonadas podem enfim ser avaliadas friamente – e tudo isso vai fazendo com que as pessoas aos poucos consolidem uma opinião sobre o assunto.
Quem vence a “batalha pela verdade sobre o que aconteceu” – ou seja, quem estabelece sua “leitura dos acontecimentos”, sua “narrativa”, como a verdadeira – colhe louros no futuro, mesmo que sofra reveses no curto prazo. Como já bem definiu alguém, o inimigo só começa a ser terrível quando começa a ter razão.
Em 1964 a censura, a prisão e a tortura impediram que isso ocorresse abertamente. Mas não impediu que a própria população fizesse sua leitura particular do ocorrido. Em 1974, apenas dez anos depois do golpe, a oposição infligiu aos representantes da ditadura uma vigorosa derrota eleitoral em todo o país. Os efeitos continuaram mesmo depois do final do regime militar: os que foram perseguidos e depostos pelo golpe voltaram do exílio e foram vitoriosos em seguidas eleições. Dois exemplos me vêm à mente: Miguel Arraes e Leonel Brizola. E foram vitoriosos também, tornando-se líderes de referência nacional, políticos que surgiram no enfrentamento da ditadura. Dois nomes me vêm à mente: Jarbas Vasconcelos e Fernando Henrique Cardoso. A narrativa dos derrotados saiu vitoriosa. Quem vai vencer agora, ninguém sabe. Mas uma coisa está clara: depois do impeachment vai ter início o combate pela verdade. Não contem com o esquecimento. Não contem com a concórdia. As rupturas, como a que está prestes a acontecer, não deixam espaços para isso.