14-10

 

Artista ganha Nobel de Literatura depois que academia o vê como “grande poeta na tradição do idioma inglês”.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

A notícia de que o ganhador do Nobel de Literatura 2016 foi o cantor de pop/rock americano Bob Dylan pegou de calças curtas especialistas e surpreendeu famosas casas de apostas. Mas era só prestar atenção na estante do homem que faz versos desde os dez anos e aprendeu, ainda na adolescência, a tocar piano e guitarra sozinho: além de ser o único entre os cantores populares a cair nas graças da Academia Sueca, já tinha em casa o Pulitzer, o Oscar, 11 Grammys (o primeiro em 1980) e o Globo de Ouro, sendo este o único a sair da prateleira para acompanhá-lo em shows. Enquanto, no palco, sua guitarra diz poesia (mais do que muitos livros do gênero), a estatueta assiste à emoção da plateia de cima de uma caixa de som. Como um amuleto. Mas Dylan não precisou de sorte para levar o mais cobiçado dos prêmios e sim de persistência na construção de uma carreira que deu a ele o status de lenda. É um artista que vive se reinventando como se os anos, em lugar de abater, tivessem o poder de moldá-lo para conseguir dar conta de novos desafios. Aos 75 ele, embora absolutamente lúcido sobre a força do inexorável, que a passagem do tempo melhor representa, segue criando e parecendo fiel a uma decisão (consciente ou inconsciente) de nunca se repetir. E não ser o mesmo durante toda a vida equivale à promessa de surpreender sempre, o que só a genialidade permite.
Daquele 28 de agosto de1963, quando ainda era um desconhecido a pedir para cantar e tocar na Marcha de Washington, onde Martin Luther King fez o seu discurso mais famoso, até a notícia da vitória no Nobel, anunciada terça-feira, Bob Dylan foi até onde sua arte podia levá-lo, mesmo o preço sendo bem indigesto – pago a partir de críticas por ter-se afastado do estilo folk de protesto indo para canções mais introspectivas, depois para o blues-rock e até flertando com a música Gospel, em tempos mais recentes. De fato, o que sempre (e apenas) importou a ele foi dar voz a uma poesia que enxergava como essencial – e pessoal, acima de tudo – embora nem sempre entendida. Não faltava quem achasse o sentido das letras acessível apenas ao próprio autor, como se relatassem uma vertigem ou alguma “viagem” a um universo extremamente particular. Seja como for, o timbre de voz diferenciado (porque cheio de aspereza) e melodias que despertavam sensações estranhas nos jovens amantes da possibilidade de transformação social faziam do autor um sujeito com crédito para representá-los. Uma das próprias candidatas ao Nobel de Literatura, a escritora norte-americana Joyce Carol Oates, 78 anos, escreveu: “Quando escutei pela primeira vez aquela voz crua, muito jovem e parecendo não treinada, francamente nasal, como se a lixa pudesse dalar, o efeito foi dramático e eletrificante”.
Efeito imediato sobre milhões de pessoas, mais precisamente. E até o que não tinha o propósito de ser protesto, vindo de Dylan, era assimilado com esta conotação. Caso de Blowin`in the wind (1963), espécie de hino para uma geração ávida por liberdade e por conceitos impregnados de uma força capaz de lembrar ao homem que antes de tudo (e sobretudo) ele é humano. Na onda do “assim é se lhe parece”, vale lembrar que mesmo um dos mais graúdos diamantes da lavra do artista – Like a Rolling Stone, de 1965 (primeiro lugar em uma lista de 500 sucessos mundiais, feitas pela famosa revista de mesmo nome), era o que o título sugeria – nada tinha a ver com a banda inglesa na qual reluz o talento de Mick Jagger. Acabou sendo gravada por ela.
No fim das contas, o rapaz saído daquela pequena cidade de Minnesota (Duluth) é o retrato de uma geração inesquecível como as próprias músicas que ele fez. Entretanto, por trás da obra, que continua a merecer os melhores e mais generosos adjetivos – sobretudo pelo quanto se mostra inspiradora – existe o gênio intrépido. Bob Dylan nunca teve medo de ir aonde o coração mandasse, mesmo sob risco de jamais ser entendido. A sorte é que há sempre a possibilidade de, quando o ouvido (ou a compreensão) falhar, o coração ouvir.