15-10

 

Mundo assiste à volta de posturas atrasadas, que refletem clara tentativa de desvalorização da mulher.

Luce Pereira (texto)

De repente, a impressão que dá é que o mundo está andando em marcha à ré, ao menos com relação a questões de gênero. A francesa Simone de Beauvoir, que encantou gerações (e ainda encanta) fazendo defesa inteligentíssima da necessidade de espaços no mercado de trabalho para a mulher, como condição essencial da emancipação feminina, ficaria tão cheia de indignação quanto tomada de espanto depois de ver, durante décadas, sua semeadura dar frutos tão vigorosos. Por que eles estariam sendo combatidos ferrenhamente, agora? Em busca de resposta para esta pergunta o universo acadêmico corre. Chamam simplesmente de onda de ultraconservadorismo, com jeito e força de tsunami. Mas enquanto as interrogações seguem desafiando o entendimento de quem sempre acreditou na evolução destas práticas e conceitos, casos que chegam a parecer bizarros vão surpreendendo pelo conteúdo e pela repetição. Mas não todos impunemente, porque nem só de sociedades que engolem absurdos goela abaixo é feito o mundo.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a história é outra. A candidatura do caricato e temeroso Donald Trump seguia como pedra no sapato de Hillary Clinton quando um vídeo de 2005 veio à luz, semana passada, e mostrou o magnata novaiorquino se gabando enormemente de tratar as mulheres com intimidades grosseiras, não permitidas por elas. Para desgraça do fanfarrão, a primeira-dama do país, Michelle Obama – a verdadeira estrela da campanha da apagada Hillary – tomou as dores para si e as transformou em discurso certeiro. Pediu que se dê um basta, que eleitores digam “chega” a comportamentos intoleráveis e disparou para a multidão, em um comício em Manchester (Newhampshire): “Posso dizer que os homens na minha vida não falam assim sobre as mulheres e sei que a minha família não é exceção”. Desde então, os votos do eleitorado feminino acenam para a candidata democrata, enquanto Trump, acuado, pega sua metralhadora verbal e dispara em todas as direções, não poupando nem caciques de seu partido que retiraram o apoio a ele. O preconceito, o desrespeito e a truculência despertaram a ira das vítimas e o preço imposto à candidatura republicana pode redundar em vexames maiores.
De um país igualmente civilizado, cuja cultura prima por respeito em todas as relações, a chanceler alemã Angela Merkel fez cara de poucos amigos endereçada ao presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, ao ouvi-lo dizer, sexta-feira, num discurso em Berlim, que o lugar de sua mulher é na cozinha dele, na sala dele e nos demais cômodos da casa dele (o pronome possessivo bem frisado). Não obstante comandar um país no qual a figura feminina falta pouco para ser confundida com um objeto de decoração, Buhari estava na casa de uma anfitriã conhecida por gestos políticos que não se omitem quando se trata defender os direitos da mulher e a importância dela na transformação mundo. A expressão da chanceler, na foto, chega a ser engraçada pelo ar de reprovação explícita, como quem reflete e não acredita que estivesse apostando num sujeito capaz de dizer algo, para os alemães, tão indigno. Merkel vinha elogiando os esforços do país de Buhari na luta contra o terrorismo internacional e havia manifestado interesse em ampliar a cooperação bilateral. Bem, isso foi antes da destrambelhada declaração.
No Brasil, o tal ultraconservadorismo segue fazendo tantos estragos que o melhor é continuar sonhando com o dia em que o país voltará àquelas conquistas tão duramente alcançadas, no que se refere à questão de gênero. Na verdadeira “operação desmonte” que se estabeleceu, as tribunas de casas legislativas – inclusive a Câmara de Vereadores do Recife – andam servindo de púlpitos para discursos retrógrados, que pregam a “obediência” da mulher ao marido. Então, aí, humoristas do Sudeste aproveitam para desancar o conhecido orgulho de sermos vanguardistas até debaixo d´água, em termos políticos. Mas “amanhã vai ser outro dia”, ao menos segundo sugere a letra de uma música que, em tempos igualmente duros, também nos encheu de esperança.