24-12

 

Só nos livros vi que ele conseguiu atrair até a ira da Igreja, por roubar a cena no nascimento de Jesus Cristo.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

No Natal de 1951, eu ainda estava longe de desembarcar no mundo. E só bem mais tarde, depois que cheguei, comecei a me desentender com Papai Noel, tanto mais quanto minha cabeça se enchia de consciência e informação. Quando criança, no meio de mais sete irmãos e de uma realidade financeira nada confortável, era levada a acreditar que seria ele a vir de muito longe tornar um pouco mais alegre a noite de 24 de dezembro. Um senhor já muito velhinho, com a missão de deixar presentes para crianças do mundo inteiro, que lindo. Os meus se apresentavam tão modestos que já daria para desconfiar da relação custo/benefício daquela viagem. Vir da terra das neves para entregar tão pouquinho, tendo, ainda, que ir de casa em casa, talvez não fosse algo compatível com idade tão avançada. Era o início das dúvidas, até que vieram os livros abrindo as cortinas do mundo, colocando lentes de aumento sobre alguns segredos de infância – Papai Noel talvez representasse o maior deles.
Apurei os olhos: pois, então, ele não tinha carne nem osso e já havia despertado a ira até da Igreja? Era o que os livros contavam. Em 23 de dezembro de 1951, na cidade de Dijon (Norte da França), a fogueira foi acesa na frente da catedral e o bom velhinho ardeu nas chamas do último auto de fé realizado na Europa. Estava rivalizando com o verdadeiro espírito do Natal – as celebrações em torno do nascimento de Jesus Cristo – e aquele seria o preço pela paganização da festa, protesto explicado na obra O suplício de Papai Noel, do antropólogo francês Claude Levi-Strauss. “A Igreja não se engana quando denuncia que na crença em Papai Noel está o bastião mais sólido e mais ativo do paganismo do homem moderno”, escreveu ele, considerado uma das mentes mais brilhantes do século 20.
Confesso que a sensação de desencanto acentuou-se ainda mais nas páginas que tratavam de explicar as transformações sofridas pela festa da qual Santa Claus foi-se apropriando ano a ano. Na verdade, a Igreja seguiu adaptando elementos natalinos como as árvores, criados desde as Saturnálias, dos romanos, e a figura do próprio Papai Noel evoluiu a partir de um mito que tinha relação com o Solistício de Inverno (21 de dezembro). Depois, essa figura recebeu uma modelagem cristã de São Nicolau e acabou mundialmente popular após a veiculação de um anúncio da Coca-Cola revelando-o ao planeta naquele tradicional traje vermelho. Imagine, por causa de um anúncio da Coca-Cola … Nada mais desalentador para quem, até então, rejeitava a ideia de imaginar Papai Noel a serviço do reino do consumo.
Muito menos aceitava a literatura trabalhando para esconder o lobo e revelar apenas o cordeiro que sempre existiram no “bom (?) velhinho”. Pois, sim: quando as comemorações andavam bem esquecidas, no início da revolução industrial, veio o escritor Charles Dickens como o seu Conto de Natal e devolveu ao mundo aquele espírito pagão da festa. Parecia mesmo um dos mais devotos promotores da imagem de Papai Noel que se tem até os dias de hoje, tanto que mereceu ser citado em livro do norte-americano Les Standiford como “o homem que inventou o Natal”.
Hoje, mais do que nunca, Noel rivaliza com o “dono da festa”, de cuja imagem e história se apreende o oposto: amor, humildade, fraternidade, igualdade, compaixão, perdão. No Natal, quando o mundo deveria estar voltado para Aquele a quem a estrela seguiu desde o nascimento, parte considerável repete, empanturrada de perus e correrias: “Ho ho ho ho!” Ainda que Jesus fosse apenas uma lenda, seria a lenda das lendas, e mereceria, nesta noite, embalar as crianças de todo o planeta. Então elas acordariam iguais, aos olhos do mundo, mais humanas e menos arruinadas pelas diferenças que a figura de Noel trata de ressaltar. Tanto tempo depois, preservo com certo gosto essa alegria de enxergá-lo apenas como uma invenção sob medida para pessoas que não conseguem enxergar o mundo como um lugar de todos. Ao menos a mim e a quem posso proteger com a verdade necessária à vida, Papai Noel não engana mais. Feliz Natal.