04-01

 

Socióloga diz que cenário deve tornar-se ainda pior, se não houver cobrança ao poder público.

Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)

Sim. Quantos de nós não sonharam com um ano começando mansinho, sem sobressaltos, como se de fato pudesse ser possível um novo ciclo longe da sombra da violência? Milhões desejaram a mesma coisa, porque Réveillon tem este poder, de transformar realidade em esperança, cansaços em ilusões acerca de quase tudo – razão pela qual as promessas acontecem nos últimos dias de dezembro mais do que em todo o ano. No entanto, sempre será ingenuidade acreditar em trégua, porque não existe mágica ou milagre capaz de reverter um dos maiores problemas enfrentados pela humanidade. Já na semana do Natal, o espancamento e morte de um ambulante numa estação do metrô de São Paulo mostrava que o monstro segue bem alimentado e tendendo a níveis de ferocidade nunca antes vistos. Logo em seguida, o ataque do terrorista Lakhe Mashrapov, 28, à boate Reina, em Istambul (Turquia), bem durante a “virada”, com um saldo de 39 mortos, e o feminicídio de Campinas (SP) onde 12 pessoas morreram não deixaram mais qualquer dúvida: o mundo viverá um 2017 marcado pela fúria do velho e mais poderoso fantasma.
No entanto, os sinais da chegada de um ano marcado pelo ódio e a intolerância não cessaram completamente – ainda faltava a rebelião no Presídio Anísio Jobim, em Manaus (AM), no primeiro dia de 2017, tragédia que terminou com a morte de 60 detentos (alguns degolados e jogados para fora do complexo), cujo saldo e selvageria só não superaram o massacre do Carandiru (SP), em 1992, onde morreram 111 presos. Sobre tamanha violência, as vozes de especialistas quase sempre convergem para questões históricas nunca enfrentadas pelo Estado como responder com políticas públicas, que acabaram ficando no meio do caminho, pois se não há compromisso dos governos em levá-las a cabo, também não existe pressão suficientemente forte da sociedade para exigi-las. Some-se a este cenário o fato de o mundo estar sob uma onda gigantesca de conservadorismo, então as perspectivas só podem ser sombrias.
E indignar-se não basta, como lembrou em entrevistas a socióloga Wânia Pasinato, que atuou como pesquisadora no Núcleo de Violência da USP. Para ela, apenas criamos um discurso politicamente correto, mas ele acaba caindo no vazio sem a devida cobrança ao poder público, sem medidas que estanquem a violação permanente dos direitos humanos. Não por acaso, o presídio de Manaus bem poderia ser considerado um inferno, de acordo com relatório produzido pela visita do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao local, feita em outubro de 2016: foi tido como péssimo, incapaz de promover qualquer grau de ressocialização. Vivendo em condições subumanas, numa espécie de terra sem lei, detentos chegavam até a consumir abertamente cocaína, segundo mostraram gravações feitas em vídeo.
Recessão econômica, enfraquecimento e desorganização do Estado Democrático, desmonte de políticas públicas, além do agravamento da intolerância – que obstrui, inclusive, a discussão sobre gênero – são aspectos que devem contribuir para aumentar a violência urbana, segundo a socióloga. Desanimador demais, porque, neste caso, o país estará sempre sob risco de assistir a episódios extremos de misoginia como o que protagonizou Sidnei Ramis de Araújo, 46, ao invadir a festa de Réveillon da família da ex-mulher, Isamara Filier, 41, matando ela, o filho João Victor, 8, outros dez parentes e suicidando-se, depois. Neste caso, entre 2005 e 2015, Isamara já havia prestado queixa seis vezes à polícia sobre o comportamento do assassino, inclusive acusando-o de abusar sexualmente do menino.
Aonde vamos parar assim, assistindo à teoria do filósofo inglês Thomas Hobbes – “o homem é o lobo do homem”, seu maior inimigo – ganhar mais corpo a cada dia? De acordo com Wânia Pasato e com todas as pessoas que refletem sobre o assunto, a saída é cobrar os novos mandatários tanto quanto possível. Porque, sem políticas públicas, o tal lobo em que nos transformamos vai acabar devorando a todos.