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Ao receber prêmio, atriz partiu para o improviso e emocionou plateia de pesos-pesados de Hollywood.

Luce Pereira (texto)
Alberto E. Rodriguez/Getty Images/AFP (foto)

Infelizmente, não há nenhuma máquina ou mágica capaz de reproduzir e multiplicar a personalidade da atriz Meryl Streep, uma das poucas estrelas sem medo de expor a face menos glamourosa de Hollywood e com fibra o bastante para enfrentar quem poderia sacudir os pilares daquela fábrica de maravilhosas ilusões, o (daqui a pouco) presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Ela não é apenas um dos maiores nomes do cinema em todos os tempos como reúne atributos raros, entre eles civilidade, humanidade e humildade, um trio de adjetivos que por si só já seria suficiente para se fazer ouvir. Mas, ontem, a moça de New Jersey conseguiu bem mais que isto: na cerimônia de recebimento do seu nono Globo de Ouro – agora o honorífico, pelo conjunto da obra – encheu de orgulho e entusiasmo a plateia lotada por outros tantos que desfilam nos tapetes vermelhos dos festivais e também colecionam respeitáveis prêmios. Aos 67 anos, chegou ao microfone com voz partida pela emoção, desculpou-se por hesitar, mas logo abandonou o papel onde trazia pronto o texto de agradecimento e fez um discurso impactante e profundo como costuma ser o resultado do seu trabalho em milhões de pessoas ao redor do mundo.
Não resta dúvida: Trump não goza da menor simpatia de astros e estrelas da meca do cinema e Meryl aproveitou para, sem citá-lo, mostrar os equívocos e males produzidos por uma política focada em retaliações, discriminações e toda sorte de preconceito,.especialmente contra estrangeiros. Apontando atores e atrizes candidatos ao prêmio da noite, citou suas várias origens, disse que não precisavam de certidão de nascimento para merecer estar ali e que sem eles Hollywood ficaria esvaziada, “só assistiríamos a futebol e MMA, o que não é arte”, enfatizou. No entanto, o momento em que sua indignação com o futuro ocupante da Casa Branca se fez mais visível foi quando lembrou o episódio no qual Donald Trump zombou do jornalista Serge Kovaleski, do The New York Times, portador de deficiência física. Sim, porque quando os poderosos escarnecem publicamente dos fracos, a tendência é serem imitados. “A falta de respeito incita a mais falta de respeito. A violência, a mais violência”, afirmou a atriz, perfeitamente à vontade no seu mais verdadeiro papel – o do ser humano que imagina o mundo como um lugar onde a paz e a dignidade são possíveis.
Neste momento, como quem antevê os “torpedos” que sairão da Casa Branca em direção a Hollywood, a dona da noite fez um apelo à imprensa para combater posturas como aquela e pediu aos colegas de profissão apoio aos profissionais no seu trabalho de trazer a verdade à tona. “Necessitamos que os poderosos respondam por seus atos, vamos precisar dos nossos jornalistas”. Foi sinceramente ovacionada. Para Trump, no entanto, o discurso memorável da mulher que mais levou Oscars para casa (só indicações foram19, numa carreira com 40 longas-metragens), não era surpresa, pois significava apenas um ataque “daquela gente de esquerda do cinema”, comandado pela “lacaia de Hillary Clinton”. O tom da declaração só serviu para aumentar a certeza de que astros e estrelas com um mínimo de coragem e senso crítico vão experimentar a sensação de viver em uma América bem distante daquela representada em belos filmes épicos.
Mas, independentemente do que Hollywood venha a se tornar na era Trump, ganhou muito em dignidade, na noite de domingo, com o discurso de Meryl Streep, já conhecida pela postura ética, a elegância e a forma corajosa de posicionar frente a questões importantes. Caso a indústria do cinema resolvesse instituir a categoria Respeito, no Oscar, para os artistas mais comprometidos com importâncias da vida real, não resta dúvida que ela poderia levar logo o primeiro. Na verdade, simbolicamente, já é dona dele.