16.01

 

Urariano Mota (texto)
Arte sobre imagem da internet (ilustração)

Lembro que em 2010, quando se completaram os cem anos da morte de Joaquim Nabuco, muitas reportagens foram publicadas. Em quase todas, o destaque foi para o homem liberal, o personagem ilustrado de Quincas, o belo. Nas breves menções às ideias mais radicais de Nabuco, dava-se um pulo esperto para o conceito de “homem complexo”.
Copio um trecho eloquente da Veja:
“As mulheres não resistiam a Nabuco… (já o abolicionismo) foi uma história de homens tomados de paixão por uma causa justa e, entre eles, nenhum mais apaixonado do que o jovem pernambucano de família ilustre, pai, avô e bisavô senadores do Império, com muito berço e quase nenhum dinheiro, que se tornou o que de mais parecido poderia existir no século XIX com uma celebridade ao estilo contemporâneo, aclamado, paparicado e adorado… assumidamente metrossexual, ou, como se dizia no século XIX, um dândi, o tipo masculino preocupado com a aparência e sensível a modismos.”
Notem que as coisas mais graves foram escritas assim, entre amenidades e atualizações que vulgarizam ou difamam. A paixão de Nabuco pela causa abolicionista como uma extensão de galã de telenovela se tornou insuportável. Não era justo que ele se destacasse pelo obscurecimento de homens tão fundamentais quanto Luiz Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, José Mariano. Homens, enfim, talvez menos belos ou apurados no vestir, mas cheios de amor e entrega absoluta à igualdade das gentes.
A grandeza de Nabuco protesta contra anestesias desviantes. Suas ideias, pensamento radical, visão de futuro, percepção aguda do Brasil até hoje não superada, estão no que escreveu, na bela e permanente escrita que nos legou. Sem esforço, anotamos:
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.
Quem anda pela zona rural, quem vê as pacientíssimas filas de doentes sob a chuva nas cidades, sabe o quanto Nabuco acertou. Ou então aqui:
“Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão”.
Quem vê a quantidade de negros ou quase negros presos, quem conhece as matanças nos presídios agora, sabe. A obra da escravaria não acabou. E mais:
“A emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação de dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor”.
Que ideia definitiva da dialética entre escravos e senhores! Quanta precisão do que diminui, do que avilta a pessoa no jogo e conflito entre opressor e oprimido. Em Joaquim Nabuco se integram em um só corpo a ética e a estética. Mas isso não estava no físico do Belo Quincas de um metro e oitenta e seis. Está em linhas lapidares em que o pensamento dá um salto, ilumina como um raio uma situação que todos julgavam conhecida, mas que se vê concreta pela primeira vez quando escrita. Isso porque Nabuco foi um homem culto e de gênio, que escrevia no papel as linhas da vida do Brasil. A divisão estúpida que dá aos ficcionistas o grau único de escritores, aqui, em Nabuco, comete o seu maior crime. Pois ele gravou esta profecia, que todo homem é obrigado a carregar:
“O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber”.
Desse desertor da sua casta, classe e raça, como o notou Gilberto Freyre, sabemos hoje que fez o diagnóstico do que continua urgente, 107 anos depois da sua morte. Pois continuamos sem reforma agrária e sem o fim da escravidão nos campos e nas cidades. Para esse verdadeiro Quincas, nada mais próprio que o seu pedido ao médico, no último leito:
“Doutor, pareço estar perdendo a consciência… Tudo, menos isso!”
Sorte nossa que ele não a perdeu. A sua consciência ficou nas linhas, no traço da criança de oito anos que nunca esqueceu um escravo fugido no engenho Massangana. Mais que belo, Quincas ficou eterno.

* Trecho do Dicionário Amoroso do Recife