04.02

 

Dona de uma arte fiel às origens, pintora estava radicada na cidade desde 1974 e morreu nesta sexta-feira aos 80 anos.

Luce Pereira (texto)
Nando Chiappetta (foto)

Olinda já foi daqueles lugares onde pessoas de fora chegam, se encantam e desistem de voltar para casa. Tinha “a paz dos mosteiros da Índia”, como disse com música Alceu Valença, ele próprio um que não conseguiu mais viver longe das ladeiras do sítio histórico. A sombra de árvores (que dão frutos) sobre os quintais; o Recife visto do alto; uma cidade em eterno compasso de espera pela folia; um jeito de olhar a vida com os olhos da arte, tudo aquilo funcionava para atrair quem buscava beleza e poesia, como era o caso da artista plástica Guita Charifker, que se foi ontem. A propósito, cenários assim costumam concentrar expressivo número de artistas e intelectuais, gente que parece ter apenas o espírito para alimentar. E Guita chegou com seus papéis, pincéis e talento, aos 38 anos, disposta a nunca mais sair a não ser quando a viagem tivesse retorno marcado. Virou devota das cores, do silêncio e da vocação de Olinda para a alegria, o que estava claro em cada um dos seus trabalhos. Em entrevistas, disse que não costumava pintar ou desenhar quando se sentia triste, pois aquilo acabava interferindo na obra. Recolhia-se, silenciava, aguardava bom tempo – respeito por si mesma que talvez explicasse o fato de não mais produzir frequentemente.
Guita foi prova incontestável de que vocação verdadeira não consegue ser ignorada, porque, de tão visceral, acaba fazendo o artista encontrar, “sem querer”, a arte. Filha de judeus tradicionalistas, que vieram parar aqui fugindo de perseguições religiosas na Europa central, desde menina gostava de desenhar, tal como o único irmão, Fernando, mas só aos 16 anos começou a dar ouvidos àquilo que pedia insistentemente para nascer. Um dia, caminhando pela Rua Velha (Boa Vista), olhou por uma janela e viu várias pessoas entregues aos seus desenhos. Era o Atelier da Sociedade de Arte Moderna do Recife, dirigida pelo artista plástico Abelardo da Hora e frequentado por muitos que viriam a ser nomes respeitados no país, como Wellington Virgolino, Zé Cláudio e Samico. Foi aceita, estudou lá vários anos e depois passou a ter aulas com o mesmo Abelardo no Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna, na Rua de São Bento (Olinda). Eram os anos 1950. Já depois de casada com Julio Charifker, retornou às aulas com o escultor, agora na Associação Cristã Feminina.
Enquanto os anos corriam, a vocação pedia mais horizontes. Em 1967, viajou sozinha à Europa e descobriu, no embevecimento absoluto com a riqueza artística que existe na Capela Sistina (Vaticano), o quanto ainda precisava avançar até vir a ter uma obra consistente. Emocionada, chorou muito. De Roma para Israel, em busca das origens, reafirmou-se então o gosto pelo desenho e ela voltou para Olinda cheia de material e inspiração. Passou a trabalhar dez horas por dia, geralmente às noites e madrugadas, até de manhã, pois só assim conseguia conciliar a criação dos filhos e as exigências de seu ofício.
Fazendo parte da geração mais expressiva das artes plásticas em Pernambuco, Guita teve professores excelentes, incluindo Aloísio Magalhães e até o polonês Frans Krajcberg, o que a levou aos sonhados caminhos da maturidade artística. Nos desenhos e aquarelas, nas pinturas a óleo ou em qualquer técnica que haja empregado em seu trabalho, lá estavam o coração e o gosto pela liberdade, que permitiam sua inspiração circular, sem preconceito, por vários universos. Era quase uma mística, amante do silêncio, da solidão, dos vegetais, da luz e das cores – e tudo isso Olinda dava muito além da conta. De 1962 a 2003, foram 12 exposições individuais no Recife, no Rio e em São Paulo, e 36 coletivas (1954 a 2001) no Brasil e no Exterior: Recife, Rio, São Paulo, Salvador, Olinda, Florianópolis, Porto Alegre, Belo Horizonte, Cali (Colômbia), Curitiba, Madri (Espanha), México, Paris (França), DF e Hamburgo (Alemanha). Sorte de quem pôde ter ao menos uma ideia da dimensão humana e artística dela.