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Glaucius Nascimento é o médico que liderou equipe salvadora da mãe vítima de uma emergência rara na medicina.

Silvia Bessa (texto)
Ricardo Fernandes (foto)

Estava ele a seis passos do leito hospitalar de Michele. Enquanto doutor Glaucius pede socorro à equipe, a enfermeira avisa: “Ela parou”. Sem gradações, subitamente. O médico joga o celular para o lado e inicia massagens cardíacas. Em segundos, colegas chegam, a entubam e assumem as manobras. Ali, na sala de espera. Obstetra, coube a Glaucius Nascimento decidir. “Vou operar aqui mesmo”. Como numa zona de guerra, resolveu. Cortou a barriga da jovem sem anestesia para que Maísa nascesse do ventre de Michele Santiago, 27 anos, vítima de uma embolia pulmonar por líquido amniótico. Retirando o bebê, o fluxo sanguíneo seria redistribuído e ela, quase morta, voltaria – pensou. Foram dez minutos sem sinal de vida. Sobreviveram mãe e filha. Raríssimo. A história por trás da história é: o parto de Michele foi a redenção de Glaucius.
Foi o feliz encontro dele com ele mesmo. “Hoje eu entendo tudo que aconteceu na minha vida por conta deste caso”, disse-me, quase em confidência, com voz esmaecida falando sobre suas intimidades. Era preciso entender quem era ele. Glaucius é um médico de 39 anos, 16 anos de formado. É a soma de muito estudo, foco voltado para a saúde da mulher e vivência de dramáticas experiências pessoais. Esse arcabouço o fez o médico que mereceu destaque na imprensa esta semana, quando foi divulgado o parto de Michele em 6 de janeiro no Hospital Memorial Guararapes, Pernambuco.
Desde os primeiros estágios quando estudante de medicina, no sexto período de faculdade, tinha predileção pela ginecologia e obstetrícia. Fez duas residências para a sua formação: obstetrícia e medicina fetal. Pouco depois da formatura, perdeu a mãe, dona Vilma, vítima de um câncer. Dona Vilma faleceu nos braços dele. “Era alucinado por ela”, conta a irmã, Ana. Pancada grande para quem foi formado para salvar. Seguiu. No mestrado, dedicou-se à mortalidade feminina em idade reprodutiva, entre 10 e 49 anos. Sorte de Michele, ele passou anos lendo prontuário e assinalando medidas para que determinada mulher fosse salva. “Em geral, óbitos maternos são evitáveis”, acredita. O mestrado foi concluído em 2007. Quis prestar concurso para a Aeronáutica, onde hoje é capitão. No doutorado, estudou “mobimortalidade materna e perinatal grave”, que trata de doenças causadoras de morte. Foi outra vez atropelado pelo destino.
Amanda, sua esposa, engravidou. Era o sonho de Glaucius fazer o parto de seu primeiro filho biológico. Com 35 semanas de gestação, Amanda acordou e disse: “Não estou sentindo Matheus mexer”. No relógio, 4h da manhã. Ele pegou o equipamento de sonar e não escutou o coração do filho. Levou a mulher para a Aeronáutica e comprovou. Estava na sala do parto que foi uma partida, dia 10 de abril de 2011. Amanda quase morre. “Ficou conhecida como a paciente do hospital com acesso venoso mais difícil”, recorda. Com 25 anos, Amanda tinha trombofilia e não sabia. Já havia cursado dois anos de doutorado. “Eu gostava muito de estudar, pegava casos graves. Estava me achando sabido, importante”. Abandonou o doutorado. “Não consegui terminar. Não tinha sentido mais”. Até que uma médica amiga, Dra. Cleone Novaes, o confortou: “Você não teve culpa”.
Glaucius se questionava. “Não entendia tantos revés e por que eu”. A devoção à profissão o fez abrir consultório e tocar a vida. Começou a estudar gravidez de risco mais uma vez, fez dois cursos de protocolo de emergência obstétrica, até que retomou o foco: “Eu vou fazer um bocado de parto, recuperar tudo isso”, contou-me, relembrando o que pensou à época. Em casa, ele e Amanda resolveram ter um terceiro filho (já têm Alana). João Pedro agora está com quatro anos.
Após contar sua vida, reconhece: “Ninguém se prepara para a maior emergência que pode ocorrer em obstetrícia, mas admito que tive vários eventos que me prepararam para tomar a atitude certa na hora certa”. Dr. Glaucius estava de plantão médico no hospital desde às 7h da manhã. Fez o impossível por Michele (“Sei da importância do que fiz mas faço questão de dizer um milhão de vezes que, se não tivesse a equipe inteira lá, não tinha como”). Depois de suturar a barriga da mãe da pequena Maísa, o doutor recomeçou. “Fui cuidar da outra paciente que estava me esperando”.