20.02

 

Quando o peito está contente, para que melhor alimento?

Urariano Mota (texto)
Greg (arte)

A imagem da menina do último carnaval pensei ter esquecido. Entre tantas fotos que cometi no carnaval que passou, do porta-estandarte de Banhistas do Pina, orgulhoso da sua tradição, ao desfile do Bloco da Saudade, com suas mulheres bonitas mais um imenso galo ao fundo sobre a ponte, a mais bela é a de uma negra princesinha. Ela ficou na memória, acredito, porque não era uma imagem. É uma pessoa. É uma linda menina, passado e futuro do carnaval. A princesinha da memória era a filha da cozinheira de um boxe do Mercado da Boa Vista. Ela, a menina, tão feliz estava, que nem comeu todo o almoço no prato. Talvez a mãe, generosa como todas, tenha posto mais comida do que a menina queria. Mas não, penso mais é que a princesinha estava tão feliz, que perdeu a vontade de comer, assim como ocorre a todos nós em raras ocasiões. Quando o peito está contente, para que melhor alimento?
A princesinha portava uma coroinha de lata, um vestidinho verde, umas trancinhas crespas que caíam pelos lados da coroinha. As trancinhas davam na gente vontade de lhe cheirar os cabelos. Vontades assim dão na gente, mas o adulto, escolado, sabe que a beleza, se tocada, pode reagir mal. Assim como um cão amarrado na corrente, que na infância enfiou os dentes na mão deste escritor. Não que a princesinha fosse morder. Pelo contrário, ela ainda mais sorriria encabulada, penso. Mas morderiam este escrevinhador outros homens na multidão do mercado, porque deviam achar descabido um beijo em trança rebelde de uma criança negra. Coisa de pedófilo se aproveitando do carnaval, assim podia pensar a maldade em forma de julgamento. Por isso eu a toquei com os olhos, que estavam encantados e úmidos de álcool e emoção, nessa mistura que vem no rosto e nem a disciplina mais férrea consegue esconder. Então pedi à minha mulher, “tire, por favor, uma foto da princesinha”. E o celular registrou.
Eu não lembro agora o seu nome. É claro, eu lhe perguntei tudo, nome, idade, bairro, quem eram os pais, essas perguntas de repórteres que primam pela objetividade. Meu Deus dos ateus, só não perguntei à princesinha se ela gostava de carnaval. Ah, se gostava!… ela era um sorriso amplo, guardado, de menininha cuja beleza não é um esplendor, mas que faz a alegria e ternura da mãe. Isso, sim. Mas isso, sim, também, transmite felicidade e amor a quase toda a gente.
Eu queria falar tudo o que manda o coração para ela. Eu bem queria ser um homem feliz por dizer tudo o que a princesinha inspira em um espaço breve, que será lido de passagem entre um instante e outro da última notícia. Por isso digo apenas, antes que esqueça: o sorriso da princesinha era triste e feliz em um só movimento. O triste vinha do seu modo de ser, ou da pequena experiência que ela já possuía da crueldade do mundo. E feliz, ainda assim, porque tão poucas vezes ela foi ou será princesa, uma princesinha, ainda que de mentirinha, sorrindo para alguém que a descobriu no meio da multidão. E feliz também ela era porque crianças não gostam de ser tristes, crianças retiram do maior golpe um instante para sorrir.
Então eu a vou chamar de Mariinha, quem sabe, princesinha Maricota, quando mais próprio seria chamá-la de Eutanasinha. Sim, uma pequenina eutanásia, porque no seu sorriso há um quê de matar sem dor a gente, ou de matar suave, que é uma forma de matar no coração que fala baixinho enquanto o som dos clarins não toca mais alto: olha, a humanidade está na infância e ninguém vê. É toda uma gente muito bárbara, princesinha, tão bárbara, que pensou tê-la esquecido no carnaval do ano passado.
Dizem que uma imagem vale mil palavras. Mentira, princesinha. Difícil é encontrar uma foto que expresse as mil palavras que o afeto quer dizer. Assim, façamos um acordo de paz entre o que pretendia tudo falar e a tua imagem no mercado: feliz carnaval, Eutanasinha. O cheiro que não te dei vai nestas linhas.

* Trecho do Dicionário Amoroso do Recife