24.02

 

Zé Ambrósio queria um olhar cuidadoso sobre as mãos que foram buscar, no mato, a madeira para a lança.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

Uma trégua na trabalheira e ao menos alguma distância do sol inclemente sempre colocam Zé Ambrósio para pensar, ainda mais porque é um sujeito calado e o que os outros gastam de conversa com o povo do maracatu, nos tempos de preparação para os gloriosos dias de carnaval, ele gasta consigo mesmo, embora nunca tenha certeza se são verdadeiras aquelas respostas saídas de sua mente. Quanto mais desfila pelas ruas do Recife e de outras cidades entregues à folia, mais não entende certas coisas e então prefere apenas constatar que as cabeças do mundo são muito diferentes. Ah, se são. Não consegue compreender, por exemplo, aqueles turistas todos de máquinas e telefones à mão, que ora fotografam alguém ora viram modelo e repetem a pose de se encostar com cara de felicidade em um caboclo de lança como se ele fosse apenas figura decorativa do reinado de Momo, famosa por suposta extravagância na roupa e na forma de evoluir durante as apresentações. Que é isso! Mesmo enxergando em si próprio ignorância e rudeza, resultado da vida difícil que sempre levou no meio dos canaviais, acha indesculpável encontrar defeitos semelhantes em pessoas cujas existências nunca exigiram sacrifícios e renúncias enormes. Pessoas saciadas em quase todos os sentidos, sem angústias causadas por faltas as mais primárias, não deveriam, portanto, confundir assim as coisas, sob pena de causar algum desgosto.
Seguiu pensando à noite, enquanto o sono não chegava. No escuro, mal conseguia ver a silhueta da mulher, entregue a um sono profundo. Nada de sexo até depois das Cinzas, assim manda o comprometimento. Logo a madrugada chegaria para pegar o caminho e ir se juntar ao resto do maracatu, na preparação final guiada pelo mestre a fim de que todos pudessem chegar ao Recife em paz e fazer o desfile sob a proteção de espíritos antigos cultuados por índios e negros africanos. Mexia-se vez por outra, ansioso, e então os turistas lhe voltavam à cabeça com jeito de quem via por trás da pesada e colorida roupa um bicho contraditório, que usa cravo na boca e lança na mão. Belo, também, porque o mistério fascina desde que o mundo é mundo. Sim, decerto há pessoas que só faltam lhes beijar a mão, adivinhando-lhes o sacrifício e o amor pelo maracatu, mas essas fazem parte de um grupo bem menor – gente de cultura, gente que até estuda os caboclos e seus rituais para depois fazer livro e dar entrevista sobre eles na televisão e no jornal.
Um galo cantou longe e Zé Ambrósio reafirmou três vezes seu desgosto ante a ignorância e insensibilidade dos turistas, que mereciam ouvir dele uns desaforos ou uma aula sobre sua devoção. Pudesse tirar da boca o cravo, sem deixar o corpo aberto e exposto às perigosas energias da festa, diria que enxergassem naquilo tudo ao menos a ligação dos “folgazões” com o mundo espiritual, conseguida através de banhos com ervas e cheiros, beberagens e orações, tudo parte dos mistérios do maracatu, religião pela qual seria capaz de dar até a própria vida. “Isso é uma brincadeira de muitos segredos, meus senhores”, acrescentaria, procurando impressioná-los mais por essas certezas do que pelo olhar fixo, intraduzível, que surge com o azougue – a cachaça misturada a pólvora engolida antes do cortejo – afinal, é preciso sonhar e vigiar. Queria propor um olhar mais cuidadoso sobre as mãos que foram buscar, no mato, a madeira para a lança, depois trabalhada até fazer jus à perfeição da roupa. E para a própria roupa – lantejoula por lantejoula pregada num desenho que realça a beleza, a fé, e ajuda a esconder a dureza dos outros dias do ano.
Passava pouco das onze horas quando o sono começou a azular os olhos de Zé Ambrósio. E no meio dos desaforos preparados para um dia disparar contra aquela gente de máquinas em punho, que vê nos folgazões apenas personagens do teatro de Momo, surgiu Ogum. O orixá ria-se tanto, e alto, da ingenuidade do caboclo ao dar cabimento àquela gente sem importância que a mulher acordou-se disposta a perguntar se o marido também ouvira. Mas Zé já não estava neste mundo e sim triunfante, com sua lança, sobre as asas do deus do carnaval. Então ela voltou a dormir, imaginando que devia mesmo ter sonhado.