11.03

 

Depois de morar em caverna, mineira é adotada, vira escritora de sucesso na Suécia e ajuda a crianças brasileiras.

Luce Pereira (texto)
Reprodução da internet (foto)

Avida desafia estudiosos e simples mortais, todos os dias, a identificar o que de fato determina as circunstâncias de cada pessoa, o desenho da existência delas. Há pelo menos seis opções de nomes e, diante deles, céticos, crentes e racionais se debatendo numa discussão sem fim. Azar, coincidência, destino, acaso, livre-arbítrio ou milagre? Os caminhos percorridos pela mineira Christiana Mara Coelho parecem feitos sob medida para alimentar dúvidas quanto à escolha. Ela tinha desembarcado no mundo a apenas 15 dias quando foi levada pela mãe, Petronila, para morar em uma caverna do Parque Estadual do Biribiri, reserva natural próxima à cidade de diamantina. As duas não poderiam esperar mais do que necessidade e sacrifício, durante os cinco anos em que viveram no inusitado endereço: se não havia o que comer na mata, iam andando para a cidade mendigar em locais movimentados. Tanto podiam receber alguma ajuda como desaforos e, de volta ao abrigo, a noite se encarregava de prolongar os maus-tratos na forma de medo de animais como escorpiões, cobras e aranhas. Pior do que o sono mal dormido e a fome que sentia eram as incertezas sobre o amanhã, que só viria a piorar com a expulsão da caverna, executada por homens e cães. Mudaram-se para uma favela de São Paulo e foi aí que tudo mudou.
Os traumas pareciam não dar trégua. Christiana passou a viver nas ruas enquanto Petronila procurava emprego e, numa noite, assistiu à melhor amiga, Camille, ser assassinada por policiais. Um ano depois de chegar, ganhou a companhia do irmão, Patriqui, mas ambos acabaram sendo levados pela mãe para um orfanato. Foram colocados para adoção sem que ela nem soubesse de fato o que aquilo representava, até serem transportados por um casal de suecos para o vilarejo de Vindeln, no Norte do país. Somaram-se aos 2,5 mil habitantes, passaram a se chamar Christina e Patrik Rickardsson (ela com oito anos e ele, com menos de dois) e ali trocaram dores por dignidade. Como num sonho. Da primeira vida a menina não guardou mágoas, mas histórias que consolidaram o voo para a mais alta liberdade – aquela em que o liberto passa a viver para libertar. Aos 33 anos, 26 deles passados entre os suecos, tornou-se uma escritora de sucesso no país com o livro cujo título foi um conselho dado pela mãe, no tempo de miséria – aconteça o que acontecer, nunca pare de caminhar – em sueco, Sluta Aldrig Ga. A primeira tiragem da autobiografia esgotou-se em uma semana e a obra alcançou a segunda posição no ranking das mais vendidas no país. Junto com o livro e a visibilidade alcançada, passou a caminhar o desejo de fortalecer cada vez mais a Fundação Coelho Growth, que criou para ajudar crianças pobres do Brasil. A entidade já tem projeto de assistência em uma creche e dois orfanatos de São Paulo.
Ao contrário do que se poderia imaginar, a autora não deixou que as mágoas pelo abandono no orfanato substituíssem as lembranças do amor recebido nos tempos da caverna. Na entrevista dada à BBC, disse que lembra da mãe contando histórias sobre Deus e anjos, de ter ganho atenção e cuidado e de isso ter sido fundamental em sua vida. As marcas do carinho são tão profundas que em 2015 veio ao Brasil e passou a procurar a família biológica, com a qual aos poucos vai mantendo contato enquanto melhora o português esquecido nos anos de Suécia onde também viveu a dor de perder a mãe adotiva, Lili-Ann, quando estava com 16 anos. Foi ela que no início do primeiro inverno dos dois pequenos em Vindeln correu a tirá-la quase sem roupa da neve direto para um banho quente. Caíra maravilhada sobre o “tapete branco”, anunciando aos gritos sua espetacular descoberta de criança: a neve era fria.
Ao ler a história de Christina (ou Cristiana), que deve ser lançada ainda neste semestre no Brasil pela editora Conceito, com tradução de Fernanda Sarmatz Akesson, tire suas próprias conclusões. Mas destino, acaso, milagre, sorte, seja o que for, a questão é que o sofrimento vivido pela autora poderia ser muitas vezes menor se governo e sociedade tivessem outro olhar para a infância e a adolescência.