15.04

 

Há 37 anos, a França perdia um de seus maiores e mais queridos pensadores, considerado o pai do Existencialismo.

Luce Pereira (texto)
Arquivo/DP (foto)

Perambular por Paris, creio eu, talvez seja considerado um dos maiores prazeres para estrangeiros que aprenderam a amar a cidade. Alguns se curvam diante da cultura; outros da História; outros tantos da arquitetura; muitos, da gastronomia. Eu gosto de Paris pelo que sei e pelo que não sei, porque, convenhamos, há coisas na vida pelas quais a gente morre de simpatia e não tem a menor ideia sobre de onde vem tal afinidade. Entre tantos e tamanhos atributos, me atraem a arte e a cultura, pulsantes aonde quer que se vá: nas esquinas, nos parques, nos jardins, no jeito de apreciar a vida – geralmente, de frente para ela nos incontáveis cafés, uma instituição parisiense. A beleza não é algo que deva ser visto entre paredes, os franceses sabem disso. Por isso, feito amante que se recusa a enxergar deméritos e ameaças à paixão, encho as ruas de pernas – como dizem os portugueses referindo-se aos incansáveis andarilhos urbanos – quase sempre atenta apenas àquilo que deixa os sentidos em festa. Porém, na minha última estada, em agosto passado, este “quase” me levou ao Cemitério de Montparnasse. Lembro disso hoje, aos 37 anos da morte de Jean-Paul Sartre, o pai do Existencialismo, cujo corpo se encontra sepultado lá, sob uma lápide simples (mais, impossível), ao lado da companheira de cinco décadas de convívio, a igualmente genial filósofa Simone de Beauvoir.
Tenho dados suficientes para desconfiar de que posso sofrer de “ecdemomania” (obsessão por viagem, por sair pelo mundo), mas o critério que uso quando faço minhas escolhas nos destinos costuma levar em consideração, como já disse, tudo o que remete à vida. Por isso nunca quis ceder à tentação de visitar cemitérios, nem mesmo os quatro mais conhecidos por ser a última moradas de famosos e aristocratas, possuir muitas obras de arte e árvores, além do cuidado habitual com que, nos países desenvolvidos, tratam o patrimônio público. Portanto, Père-Lachaise, Montmartre, Passy e Montparnasse estavam fora dos meus planos. No entanto, naquela quarta-feira, circulando pelo 14º arrondisement, onde respira-se a presença dos dois filósofos, deu vontade de entrar por um dos acessos mais discretos do cemitério. Fazia um calor tremendo, Paris estava sob temperatura de 40 graus graças a um fenômeno velho conhecido dos franceses – o canícula chega deixando em tudo insuportável sensação de “abafamento” e o turista, mesmo o dos trópicos, sofre. Entrei: ruas muito amplas, limpas e silenciosas, pessoas lendo nos bancos, um verde que parece desenhado para compor a calmaria. No acesso principal, uma relação dos túmulos apontava o endereço, localizado sem muito esforço.
A lápide de mármore não contém mais do que o nome dos dois com as respectivas datas de nascimento e morte. Enquanto um oriental tirava fotos, eu observava bilhetes colocados por fãs, passes de metrô, algumas flores e até moedas de quase nenhum valor, clara tentativa de deixar ali algo de si, da admiração imensa. Naquele momento, ocorreu-me de estar sem a proteção dos verbos que me acolhem em Paris (sonhar, amar, viver …) e de súbito uma lágrima e depois outra e outra e outras começaram a saltar desavergonhadas pelo meu rosto. Logo eu, que frustro quantos esperam de mim arroubos de fã. Mas sabia o que as tornava tão espontâneas e verdadeiras: estar de frente para um dos maiores exemplos de que existir resume-se a lembranças e heranças, no caso deles, de magnitude incomensurável. Duas das cabeças mais brilhantes do século 20 resumidas àquela cena, que não dizendo nada sobre os protagonistas dizia tudo sobre a vida.
Aos 37 anos da morte de Sartre, reitero que não desejo voltar mais a nenhum outro cemitério da cidade. Basta-me a biografia, a riqueza e os encantos dela, que enchem de graça lugares como o Café de Flore (Saint-Germain-de-Prés) e o café/restaurante La Coupole (Montparnasse), dois dos preferidos de “Poulou” e do “Castor”, apelidos com que se trataram bem de perto. Além disso, como escreveu Ernest Hemingway em um dos seus livros mais célebres, Paris é uma festa. Para que sentir saudade?