16.06

Releitura de tradições juninas acaba abrindo espaço para que elementos estranhos à festa avancem.

Luce Pereira (texto)
Editoria de arte (imagem)

Ligo a TV, algo que tenho feito com frequência cada vez menor porque quando não é a realidade cuspindo tragédias de magnitude variada, é o entretenimento tentando convencer (da pior forma) que “os tempos são outros”, expressão geralmente escolhida para demonstrar a enorme má vontade com as tradições genuínas e a cultura popular. O vídeo se enche de um turbilhão de cores: a música parece forró, mas não é; a coreografia parece de quadrilha junina, mas não é; os brincantes querem representar figuras do folclore nordestino, mas lembram personagens dos pampas gaúchos e, para piorar, o conjunto deixa transparecer inquestionável semelhança com uma escola de samba. Até “enredo” tem. Segue a transmissão e logo fico sabendo que se trata de um espetáculo de quadrilha. Estilizada, claro, porque a junina nunca se preocupou em ser espetáculo, apenas manifestação de simplicidade e alegria. Ah, sim, é possível que logo apareçam os avessos à preservação dos bens culturais – sobretudo os imateriais – dizendo que este é um discurso purista, pois a cultura “evolui” . O termo, na verdade, é um desastre, porque não parece da natureza dela ter que viver trocando de roupa para se mostrar viva, enquanto o figurino velho vai sendo jogado na fogueira.
Polêmicas à parte, sem querer alimentar nenhuma, o estímulo às quadrilhas estilizadas – uma invenção de não mais do que 20 anos – surgiu em programas de entretenimento como o de Xuxa, quando ela ainda era a rainha do segmento infantil na televisão brasileira. Daí porque é quase pecado mortal defendê-las como manifestação da cultura nordestina, quando se trata apenas de uma proposta de entretenimento inserida no ciclo de festejos juninos, com apoio de veículos de comunicação de massa que, se não são o pai da “criança”, são, com certeza, os padrinhos. O formato de competição (concursos), inclusive, deixa clara a intenção de mostrá-las como espetáculo. É de disputas que a audiência da TV no Brasil tem se alimentado, afinal, com programas apostando em quem dissimula melhor (realities shows), cozinha melhor, canta melhor (…) Talvez o problema esteja apenas em chamá-las de “quadrilhas”, o que confunde com aquelas que são realmente parte da cultura junina do Nordeste.
Cada macaco no seu galho, segundo aqueles que não gostam de misturar as coisas, mesmo sob risco de serem vistos como conservadores ou tradicionalistas. Naturalmente, qualquer um pode inventar uma pamonha de milho com chocolate ou uma canjica que leve creme de chantilly na fórmula – porque, afinal, o mundo vive em busca de novidades – mas, convenhamos, os quitutes mereceriam outro nome, para não matar de desgosto ou confundir os devotos da velha e boa cozinha junina nordestina. Então, lamenta-se apenas que gestores públicos e veículos de comunicação, sobretudo, estimulem ou permitam a incorporação de ritmos e espetáculos estranhos à festa. As quadrilhas estilizadas, por exemplo, ficariam bem em um São João fora de época, enquanto os artistas ditos sertanejos se encaixariam perfeitamente neste formato. Trocando em miúdos, não se trata de combate gratuito à indústria do entretenimento, mas de colocá-la nos espaços devidos, sem invasão ao terreno da cultura. São coisas tão distintas, no fim das contas, que juntas só lembram a tal pamonha com chocolate.
Negar que existe uma legião de desgostosos ante o avanço de elementos estranhos às tradições juninas do Nordeste, seria como querer tapar o sol com a peneira. Esta insatisfação, que é bem antiga, parece encontrar abrigo nos versos do grande Patativa do Assaré, que morreu com 92 anos de sabedoria, em 8 de julho de 2002: “Poeta, cantô da rua/ Que na cidade nasceu/ Cante a cidade que é sua/ Que eu canto o sertão que é meu/ Se aí você teve estudo/ Aqui, Deus me ensinou tudo/ Sem de livro precisá/ por favor, não mêxa aqui/ Que eu também não mexo aí/ Cante lá que eu canto cá”.