23.06

O bairro todo sabia qual era o dia mais importante no calendário para ele – era o de hoje. Nada de trabalho.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

Havia uma personagem, chamava-se Biu do Arraiá não porque fosse filho de família de forrozeiros como era a do rei do baião, mas porque cresceu e envelheceu dando vivas ao santo e à sua festa – para ele, a mais bonita do ano e do mundo. Biu só entregava o leite saudando a freguesia com solfejos juninos, um repertório daqueles e bem executado, feito tivesse na boca uma banda de forró pé de serra. Podia ser carnaval, mas lá vinha ele fazendo pouco da frevança, dizendo bom dia sem deixar de assobiar um grande sucesso do cancioneiro nordestino. Era o bom humor em carne e osso, mesmo quando alguém, lembrando a época de Momo, o desafiava a trocar, por exemplo, Asa Branca pela conhecidíssima marchinha O teu cabelo não nega, de Lamartine Babo. Ria. Era inútil. Nem pela promessa de ganhar alguns trocados a mais se prestava à experiência, como se João, o santo, viesse a recriminá-lo pelo pequeno desvio na devoção. O bairro todo sabia qual era o dia mais importante no calendário para Biu – era o de hoje. Feito “presidente” da própria vida, ele decretava feriado em casa: nada de leite, de gente esperando com vasilha à porta, de falta de troco, de fiado. Logo cedo, vestia-se “juninamente” e lascava um forró de Luiz na vitrola. O disco tão gasto, coitado, que ouvia-se a chiadeira do terreiro enfeitado com bandeirolas, chão bem varrido para o arrastapé que começaria à boca da noite, só terminando quando o sanfoneiro desse sinal de já ter os dedos entrevados.
Tomadas as primeiras providências do ritual de celebração, ele subia na carroça, enfeitada com papéis coloridos, levando o estandarte do santo, e rumava para o bairro da entrada da cidade, que ficava a cinco quilômetros. O rádio de pilha ia tocando, ao lado, e até Judite, a burra – trajando um colarinho de chita e chapéu de palha colorido – parecia também concordar com a importância do dia. Biu ria ao lembrar que iria recolher não os trocados da venda do leite, mas pamonha, canjica, pé de moleque, milho verde para assar e cozinhar, umas garrafas de aguardente – porque sanfoneiro não é de ferro – e de refrigerante, pois no arraiá do terreiro sempre tem crianças misturadas a moços e velhos, recebendo uma lição de convivência inesquecível para qualquer mortal nascido no Nordeste. Dizia que era de pequenininha que a pessoa tinha que aprender a amar e preservar suas raízes, conclusão digna de gente que estudou coisas a respeito das quais ele jamais havia pensado. Mas, entenda: pessoas assim parecem ter anjos soprando-lhes sabedoria ao ouvido. Deve ser. Então a clientela toda corria a socorrer a devoção dele e o resultado é que a carroça voltava para casa abastecida de donativos. Já era saudada com animação pela vizinhança, que vinha sempre ajudar nos preparativos, cada um dando um pouquinho de si e das poucas posses.
Sei que nesta sexta-feira deve me passar um filme pela cabeça. Por ironia, Biu caiu durinho no meio do seu arraiá, faz uns dez anos. Já andava meio desgostoso com tanta coisa estranha acontecendo, queixava-se que as “modas modernas” inventadas pela televisão distraiam os jovens de enxergar claramente os seus “cordões”, aqueles destinados a unir o começo da vida ao fim. Achava um dom olhar para trás e amar o que via e nisso assemelhava-se a um filósofo de nascença, forjado na obrigação de sobreviver a qualquer custo. Pensa que aquele universo agredido pelas necessidades mais básicas doía? Doía quase nunca, a força do santo não deixava. Era acudido pela poesia de Luiz Gonzaga, de Patativa do Assaré, de Jackson do Pandeiro – a quem chama de “magrelo virado na gota serena” – e imaginava o Nordeste como um país. Ainda tenho dúvida sobre se não é mesmo, mas nenhuma acerca do amor que todos, seguindo o exemplo de Biu, deveríamos ter pelas tradições juninas, que são como uma janela por onde se vê o lado mais luminoso da alma nordestina – tão simples e tão forte. Salve o São João e quem o quer matuto, alegre, raiz.