15.07

Cresceu assim, desejando chegar ao aeroporto do Recife metida na melhor roupa – e até de óculos escuros.

Luce Pereira (texto)
Paulo Paiva (foto)

Embora nos lugares mais desenvolvidos do mundo a tecnologia já aponte para a possibilidade de o transporte aéreo individual vir a ser algo comum como é táxi, um bocado de pessoas, em certos lugares do Nordeste, ainda sonham com a primeira viagem de avião. Sonho de infância, muitas vezes, nascido sabe Deus lá como, no meio de tanta adversidade. Dona Joana cresceu assim, desejosa de um dia chegar ao aeroporto do Recife metida na melhor roupa – e até de óculos escuros, que haveria de arranjar muito antes de qualquer promessa de subir os degraus da aeronave, sentindo-se outra pessoa que não a Joana de todos os dias. Quando dava conta de toda a lida, ela e outra sonhadora crônica, dona Geralda, madrinha de dois dos seis filhos, juntavam-se para dar asas à imaginação. Mais do que qualquer coisa, a vizinha queria mesmo era assistir a um show de Roberto Carlos. Não era possível que um anjo não providenciasse, antes de ela bater as botas, um ingresso para ver o rei em qualquer canto do estado. Disso o marido, Ernesto, um sujeito de pouca conversa e já beirando os 70, tinha até um pouco de ciúme, ficava cortando-lhe as asas cada vez que ela abria o berreiro acompanhando a música no rádio de pilha, enquanto aprontava as refeições. “Deixa, homem, vai cuidar de tua vida”, era a resposta, e seguia cantando. Às vezes, até às lágrimas.
A notícia chegou num domingo, pouquinho depois da hora do almoço. Quando o telefone celular tocou, Joana saiu em desabalada carreira para o terreiro e subiu a parte mais alta, único lugar onde o sinal era melhor e a ligação sustentava. Geneci dizia que tinha conseguido folga de uma semana na firma onde trabalhava como chefe dos vigilantes e que, com as economias de um ano, iria realizar o sonho dela. Sim, senhor, uma viagem do Recife, onde ele morava, a Belo Horizonte, onde morava a irmã da mãe. As duas não se viam há mais de 15 anos. Joana quase teve uma síncope, atropelava as palavras. Começou a cantar um trechinho de Emoções, a música de Roberto Carlos, e pensou que o anjo dela, por certo, teria se empenhado mais do que o da amiga. “Obrigada, meu filho!, muito obrigada! Deus lhe abençoe!”. Clic. O telefone ficou mudo e então disparou em direção à casa. Abraçou Gercino, o marido, rodopiaram ao ritmo da euforia dela, os filhos engrossaram o abraço. De repente, uma tristeza sem cabimento: e se Geralda nunca conseguisse ir ver o rei? “Oxe”, repreendeu-se intimamente, “isso lá são horas de imaginar coisa ruim?!”. Bem depressa, espantou o pensamento. Depois ela mesma se encarregaria de rezar um rosário inteirinho na intenção do sonho da comadre.
Os sentimentos humanos são muito confusos. Geralda adorava Joana, mas, intuindo que a partir dali ficaria sozinha com seu sonho, despediu-se um tanto dividida. Enquanto abraçava a amiga, antes de ela entrar no carro-lotação que a levaria ao Recife, sentiu, bem lá dentro do peito, uma pontinha de inveja. “Sua vez vai chegar, comadre, sossegue. Até a volta”. E se foi, já com os óculos escuros que mandou comprar, fazia certo tempo, na feira de Serra Talhada. Não dormiu nadinha, na noite que a separava do sonho, porém, amanheceu radiante. No aeroporto, tudo parecia feérico demais, mas ao subir a bordo foi que sentiu que parecia estar subindo ao céu. A comissária oferecendo lanche – e de graça – ah, aquilo é que era vida. O avião decolou, Joana deu um gritinho apertando a mão do filho, junto com o terço, mas sem conseguir desgrudar os olhos da janela. Lá para as tantas, com o peito já serenado, olhava a sombra do avião na copa das árvores e pensava em Geralda. Estava decidido: iria escrever para a televisão, pois dizem que lá sonho de gente pobre é levado a sério. E apertou com força o terço.