05.08

 

O “Poeta do Estácio” não resistiu ao câncer de medula e se foi, aos 66 anos, deixando riquíssimo legado musical.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

O surdo da Estácio de Sá chorou sentido, ontem, a morte de um dos maiores ícones da escola, o cantor e compositor Luiz Melodia, 66 anos. O Brasil, também, porque, afinal, ficou sem o “auxílio luxuoso” de um artista inesquecível até no nome, que desceu o morro, na década de 1970, não apenas para escrever e interpretar sambas, mas para se atrever a colocar roupa, suingue e alma nova neles, sem medo nenhum de ser considerado um sujeito pretensioso ou mesmo de ir parar na lista dos “malditos”. Ele queria criar o próprio estilo aproximando a música de raiz do som tocado pelos negros americanos, a respeito dos quais falava com extrema admiração, e bebeu de todas as grandes fontes da época para criar sua alquimia musical, sofisticada desde sempre. Quando, em 1973, Juventude Transviada passou a ser ouvida na trilha sonora da novela Pecado Capital, o país já intuía que o filho do funcionário público e compositor Oswaldo Melodia já era sério candidato a deixar herança das mais ricas para a MPB, o que pode ser visto nos 16 álbuns da carreira. O cara elegante, exigente com o trabalho, que jamais permitia interferência das gravadoras na escolha dos repertórios ou nos arranjos, era também modesto e de uma simplicidade desconcertante quando, por exemplo, afirmava ser uma honra artistas como Zeca Pagodinho – a quem admirava – optarem por gravar suas músicas e que não importava se, como compositor, ficasse na invisibilidade.
O trabalho dele soava genial e quem entendia de música sabia, porque o som era moderno, com letras sobre temas pulsantes, quase crônicas, mas sem nunca fazer concessões a apelos fáceis, com vistas a vender mais discos. Se queria falar de amor, falava, ou se desejasse partir para uma abordagem social, também não se impunha barreiras. Neste sentido, assemelhou-se à disposição de outros nomes brilhantes como Gonzaguinha e Jards Macalé para criar em nome da própria satisfação, antes de mais nada, porque nunca souberam abrir mão da autocrítica severa sobre a marca deste prazer nos seus rebentos musicais. Se isso é ser “maldito”, sempre o foram em grande estilo, mas o nome, na verdade, é respeito por si mesmo. Foram a personalidade forte e o desejo de dar asas à imaginação os ingredientes que fizeram, no início dos anos 1970, pessoas do quilate dos poetas Waly Salomão e Torquato Neto subirem o morro do Estácio e depois alardear aos quatro cantos da Zona Sul o Rio – termômetro do que iria estourar na MPB – a existência de um garoto magrelo e cheio de talento, com pinta de quem iria surpreender. De fato. Estava escrito.
Era um luxo para o Brasil ter Luiz Melodia em sua ala mais reluzente de compositores/cantores, emplacando sucessos como Ébano, Pérola Negra, Juventude Transviada e Estácio, Holly Estácio, só para citar alguns. Mas o agradecimento final com que o artista sonhava não foi o que viu: enquanto estava internado em tratamento contra o câncer de medula que o levou, teve a casa invadida por ladrões que sumiram com pertences de extrema importância para ele, como um computador no qual estava praticamente todo o material de carreira, incluindo músicas, arranjos, textos, pesquisas e releases. Decerto, este não é mais o país que o consagrou, mas foram com ele as lembranças de um tempo muito mais feliz, de uma terra onde se morria muito mais de amor do que da asfixia provocada por uma política torpe, vil, imoral. Que descanse, pois, certo que nos fez um bem enorme.