21.08

Abrimos o espaço para a beleza destas linhas que refletem a resistência segundo Urariano Mota.

Memélia Moreira (texto)
Reprodução de capa de livro (imagem)

Estou diante de A mais longa duração da juventude (Editora LiteraRua), de Urariano Mota, colega nosso, jornalista, mas, sobretudo, um escritor, um filósofo, uma pessoa sábia que em uma página faz viver passado-presente-futuro como se não houvesse hiatos. O livro é um suceder de paixões. Paixão na sua essência do apaixonar-se. Paixão que se desdobra no sentido mais amplo, o do amor. O amor das imensidões. Amor ao povo, e aos infinitos brasis com os quais convivemos mesmo que nos pareça invisível. Mesmo na descrição dos momentos mais trágicos a poesia está presente. O seu “Eu” profundo de poesia, um eu que também se nega quando ele tenta ignorar os mistérios da vida, entre eles, os pressentimentos que o perseguem até na mesa de um bar do pátio de São Pedro naquela cidade do Recife palco das resistências narradas em A mais longa duração da juventude. Um eu que filosofa e que se aproximando dos 70 anos é aquele mesmo menino magro, que se considerava feio no passado, mas que agora descobre ser uma vida intensa dedicada à luta, a fonte da sua beleza.
Conversei com o autor algumas vezes e lhe disse que se tivesse capital criaria um roteiro turístico no Recife percorrendo as ruas, restaurantes, bordéis, pensões, a Praia da Boas Viagem, Porto de Galinhas e outros logradouros que em vários momentos foram cenários daqueles meninos que carregavam no peito o ardor revolucionário. E mais, que produziria um filme com inspirações de Jean-Luc Godard dos anos 1960/1970 e Fellini. A viagem daqueles combatentes a Porto de Galinhas é felliniana. Mais especificamente, uma Dolce Vita de uma juventude que criava situações que poderiam subverter a perversa ordem social vigente e cujas armas eram o sonho, a palavra, uma arma talvez enferrujada e um simples mimeógrafo guardado sob cuidados. Um dos mais revolucionários instrumentos da nossa geração.
Para mim, os personagens para sempre inesquecíveis são Vargas, e o Gordo, uma verdadeira enciclopédia musical, e Luiz do Carmo. Há muitos outros. Zacarelli, Selene, Torquato de Moura, “o guardião das virtudes subversivas”, Zé Batráquio e ela. Refiro-me a Soledad Barrett. Se em Soledad no Recife Urariano apenas abria a cortina da paixão por Soledad, neste livro ele a escancara. Perto do fim de A mais longa duração da juventude, escreve: “A mulher que em legítimo platonismo eu amei. Amo.”. O legítimo platonismo se transformou no amor eterno, porque agora Soledad vive na eternidade, na imortalidade.
Há grandes e inesquecíveis momentos. Os dois que mais me emocionam são a viagem dos revolucionários do Recife a Porto de Galinhas, dentro de uma Vemaguete, às quatro da manhã de um sábado, sem sequer conhecerem o caminho entre as duas cidades e passando riscos reais de morrerem num acidente, porque Alberto, o único que dirigia, dormiu várias vezes ao volante, e tudo porque “Pasárgada não podia esperar…”
O outro momento que me marcou e, aqui, pela tragédia, é também uma viagem. Talvez a última antes de ser atingida pelas balas da ditadura. A viagem de Vargas no ônibus em que embarcou depois de dizer à advogada Gardênia que era um homem morto, que já estava sendo caçado pelos homens de ouro do delegado Fleury e pelo infame cabo Anselmo. Ela o aconselha a fugir, mas ele rechaça a ideia para não abandonar “Nelinha”, sua mulher que já era mãe da menina Krupskaia. Ah, quanta paixão existe na alma revolucionária!
Os trechos do romance onde se expõem as carências do mínimo derrubam um mito. A Direita na incansável campanha para desqualificar a luta que nos concederia um mínimo de Democracia espalhava que os guerrilheiros do Brasil eram todos “fihinhos de papai”, filhotes da burguesia. NÃO e NÃO. Havia pessoas pobres, operários, desempregados, professores mal pagos, mas incansáveis, trabalhadores de um barracão coberto de zinco que estavam imersos na luta política e na luta pela sobrevivência.
E essa verdade aprendida no livro de Urariano Mota teve para mim não um gosto de vingança contra os ditadores e seus capatazes, mas uma esperança de que um dia, num futuro que talvez eu não alcance, os pobres, os miseráveis tomem, retomem as rédeas de um mundo com a qual ainda sonho.